A Tábua Ocre de Núbia (ou o Significado da Vida)

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Quadro VIII: Cena 11ª. Quadro IX: Cenas 1ª e 2ª.

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Cena 11ª


     Volta a acender-se rapidamente a luz. Magda, sem avental, continua a correr para frente. O cenário está completamente limpo, com excepção de um único objecto. Um expedidor de cones de gelado, mesmo diante da eterna cortina de neve.

Voz do Prof. Sandar Constandhi.- …Era tarde de mais para chegar ao concerto, mas Magda saiu correndo para a rua sem se preocupar sequer de fechar a porta. A filha da senhora não demoraria já muito em chegar. Não se importava. Sabia perfeitamente o que ia acontecer. Parecia que andava estonteada, a vagar ao acaso pelas ruas borbulhantes de gente do Domingo, mas ela levava um rumo bem pensado… E, abrindo-se passo entre a multidão conseguiu chegar logo ao passeio marítimo.

     Detém-se um momento e vira 180º. Descobre qualquer coisa na cortina de neve.

     Ali estava o posto dos gelados.

     Magda corre para o fundo. Apanha um cone no expedidor e coloca-o na linha da cascata de neve, até que se enche e desborda como um gelado creme.

     Pediu um dos maiores, de creme. Isso foi tudo. Mas sentiu, mentes o enchia o empregado, que, bem valera a pena. Que não ia nunca verter mais uma lágrima de açúcar ou heroína, que era como se, com todas as suas lágrimas tivesse feito um grande gelado. Cinco minutos de felicidade que já não lhe poderiam roubar. E começou a passear, sempre devagar, pela beira-mar, a saborear o seu gelado…

     Vem a caminhar para diante, não em linha recta, mas a traçar uma ampla curva pelas margens da cena. Começa a diminuir a luz e a soar a mesma melodia dantes. Umas mãos emergem no meio da neve com um saxofone dourado.

     …e para ser feliz, completamente feliz, durante cinco minutos na vida, bastou-lhe com saber que, naquele preciso instante, algures numa praça da vila, estava o seu próprio “moço” a tocar, num saxofone dourado, alguma melodia longínqua e melancólica… E foi feliz a olhar o mar entre sorvo e sorvo, a passear sem pressa, como uma senhora… a esperar a chegada da polícia, sorrindo de pensar a cara que iam pôr quando, ao lhe perguntarem por que o tinha feito, ela simplesmente respondesse: por um gelado de creme…

     Muda radicalmente o tom de voz.

     E o grande mérito da actriz era conseguir transmitir toda aquela atmosfera de paz e de calor, com um vestido sem manga, quando não deixava de nevar. Ah, e também era curioso que, para representar a chegada da polícia, aproveitavam o sinal de alarme do próximo bombardeio…

     Ouve-se uma alarme antiaérea. Uma sombra de avião percorre a zona do parco iluminada pelo sol. Faz-se escuro total e cessa a música. No silêncio ouve-se a conclusão do Prof. Sandar Constandhi.

     Ora bem. O que eu digo é: porque não podíamos fazer, agora, nós, com a Tábua Ocre de Núbia, o mesmo que estoutros fizeram com a neve?
Voz do Secretário/Coordenador.- Muito obrigados, professor Sandar Constandhi pela sua muito construtiva dissertação… E agora peço-lhes uma especial atenção, porque é uma honra para mim ceder o uso da palavra ao Ilustríssimo Senhor Presidente da Academia Superior de Arqueologia Emocional, Doutor Alexandrino Constante…





Quadro IX
Os Sonhos de Miss’s Morlay
no seu Chapéu de Flores

Cena 1ª


     O Doutor Alexandrino Constante, cujo busto aparece ao se acender a luz, é um velho risonho de faces encarnadas, cabelo branco e abundante, e fato impecável. As mãos, aos laterais, tremem-lhe da emoção e consegue emitir apenas um fraco fio de voz.

Doutor Alexandrino Constante.- É minha a honra de me poder dirigir a este auditório….

     Tenta aclarar a garganta, e com um esforço adicional recomeça.

     É minha a honra de me poder dirigir a este auditório…

     Continua sem se perceber bem. Há alguns sons confusos. As suas mãos retiram-se para um lateral e regressam trazendo um enorme microfone de mesa (um desses antigos, com forma de alcachofra) que aproxima um pouco para si.

     É minha a honra de me poder a este auditório para glosar a vida e a figura de Miss’s Morlay, a quem, muito justamente, a Organização deste Congresso, decidiu dedicar a presente e solene sessão de homenagem. Miss’s Morlay não precisa, porém, de apresentações, e não há praticamente director de departamento de (de uma só atacada todo o texto entre aspas) “arqueologia analítica aplicada do novo império de Egipto relativa ao curso médio do Nilo e as suas relações com a criptografia clássica” do mundo inteiro, que não conheça a sua obra.
     Nós não estaríamos aqui reunidos hoje, se não fosse por ela. A nossa mestra, a nossa pioneira. Ela vive em nós. Nos nossos trabalhos, estudos, investigações. Pode-se mesmo dizer que está “cientificamente” viva, porque ninguém poderá demonstrar nunca que está morta. Porque ninguém, como todos nós sabemos, chegou jamais a vê-la morta, e a sua imagem se há-de manter, assim, dentro de nós, eternamente viva.
     Alguns espíritos obtusos sei que estarão a pensar nestes momentos: nascida em 1859 numa muito nobre casa do Condado de Yorkshire, ao norte da Inglaterra, hoje deveria contar com mais de 138 anos se continuasse viva!
     Mas não é vã especulação ou pretensiosa frase. Não. A sua memória (ou, mais do que isso, uma parte da sua imagem, daquela presença irrepetível que ia trás de si a perfumar o mundo) continua viva, hoje aqui, entre nós, e vou demonstrá-lo com factos, científicos e irrefutáveis. Vou demonstrá-lo usando os mesmos métodos que usamos para demonstrar a existência de Tutancámon ou Nefertiti: a localização, datação e verificação de restos arqueológicos materiais, palpáveis e objectivos.

     As mãos saem pela direita e regressam com um chapéu de palha, muito na moda colonial de fins de século. A copa bastante rectilínea e as abas não demasiado largas. Tem uma fita de cores a redor, em que se prendem um sem número de flores vivas (ou que aparentam sê-lo). O seu tamanho, nem é preciso dizer, corresponde perfeitamente com o das mãos e a cabeça do Dr. Alexandrino Constante, ou talvez seja duas talhas menos. As mãos ficam a sustê-lo, nervosas, fazendo-o oscilar suavemente para um e outro lado.

     Este é o seu chapéu de flores. Aquele que ela levava o dia em que se perdeu para sempre na imensidade do deserto, para os lados do Oásis de Dakhia. Foi encontrado de forma casual, recentemente, por uma caravana berbere, em cima de uma elevada ondulação de areia, num lugar impreciso do deserto Líbio, que ficou baptizado, desde então, como “Dunadama”, expressão do dialecto local impossível de traduzir, mas cujo significado seria, mais ou menos, “a duna que parece uma senhora”.

     Começa a correr o pano.






Cena 2ª


     Ao correr o pano, nesta ocasião, não se descobre nada novo. As mãos, porém, do Dr. Alexandrino, a prolongarem o seu vaivém nervoso, irão fazendo girar completamente esse chapéu, como uma plataforma cenográfica. Nesse movimento vão empurrando, aliás, sem dar por isso, o microfone, que se afasta do centro do cenário, e isso vai fazendo que vá minguado a sua voz até se perder igual que o pano.

     Como é sabido, Miss’s Morlay chegara a Egipto, a fins dos anos oitenta do passado século, acompanhando o seu marido, o capitão Morlay, que vinha ao mando de um regimento de sapadores que tinha herdado do pai….

     Do outro lado do chapéu aparece a figura de Bedla. Está sentada sobre uma flor do chapéu, de caule longo e curvado, cuja corola pousa sobre a aba. Bedla traz uma espécie de combinação folgada. Vai descalça e esta a depilar, deixando cair por diante a longa melena, umas rosas diminutas que lhe crescem nas pernas.
     Quando o chapéu deixa de girar e Bedla fica no centro, a continuar a sua depilação floral, surge, por trás do chapéu, Mânio. Vem ainda a pôr a sua malha colada e colorida, e traz um turbante na cabeça com uma pedra brilhante e uma pena azul.

Mânio.- Ainda assim, Bedla? É tarde, da-te pressa, vamos começar…
Bedla.- (Sem deixar de o fazer) Não pretenderás que actue com todas estas flores!
Mânio.- (A acabar de se vestir) Com a saia longa, quem as pode ver?
Bedla.- Sinto-as eu e não consigo concentrar. Fazem cócegas.

     Por trás do chapéu também, como a perseguir Mânio, aparece Tator. É um indivíduo grosso e careca, que veste uma malha parecida com a de Mânio, com a única diferença de cobrir a cabeça com um boné de tropas expedicionárias britânicas, branco, com forro vermelho e um prolongamento de tecido semelhante a cair sobre a nuca. Traz nas mãos um boné semelhante, que apresenta para Mânio enquanto corre.

Tator.- Mânio, Mânio, esqueces o boné!

     Mânio colhe-o e tenta colocá-lo, mas não pode, evidentemente, a pesar da ajuda fervorosa de Tator, que depois de vários ensaios conclui, grave:

     Não entra… a causa do turbante.
Mânio.- Eu sem turbante não saio!
Bedla.- Quem viu as minhas cartucheiras?

     As acções de todos se sobrepõem e misturam. Falam e disputam amostrando uma certa psicologia infantil, embora os corpos (a pesar da sua evidente pequenez respeito do chapéu) sejam adultos. O ambiente é de preparativos de função escolar. Bedla, acabou por abandonar a flor em que senta, que volta a recuperar algo da sua louçania, e foi para uma flor composta, prendida no outro lado do chapéu, em cada uma de cujas ramificações aparecem colocadas diferentes peças de roupa como se fosse um bengaleiro. Aí vai-se vestindo, e não vê as suas cartucheiras, mas estão penduradas de uma outra flor mais pequena que assoma tão só um bocadinho além.

Tator.- Tenho uma solução!
Mânio.- …que não saia eu?
Tator.- Não: pores o turbante por cima do boné, estás a ver?

     Tira o turbante de Mânio, coloca o boné e, por cima, o turbante. Fica assim um estranho oficial britânico saído das mil e uma noites. Mânio acha óptimo. É preciso acrescentar que as malhas de ambos representam fardas do exército expedicionário, com as suas levitas, botas, galões, cordões de ouro etc. Tudo desenhado à tinta no tecido, e colado ao corpo, como a malha.
     Para acabar de confundir as coisas aparece, de pé, no alto do chapéu, Áddis, vestida com um disfarce de insecto não catalogado, com toques de abelha, borboleta e libélula.

Áddis.- É hoje o dia que me deixem polinizar algumas histórias?… Sempre fico para o final!

     Aparece, também no alto e trás dela, Duba. Dá-se ares de director do espectáculo. Traz levita de verdade e um barrete verde na cabeça.

Duba.- Já chegará a tua vez, Áddis… (Retira-a suavemente para o fundo. Aos de baixo) Vamos lá, rapazes, são horas… Vamos fazer a cena do acampamento…
Bedla.- (Acaba de apertar as cartucheiras) E o chapéu? Tinha que ser agora o chapéu! Alguém viu o chapéu?
Duba.- Estamos todos nós postos em cima dele, Bedla… Também não é preciso que te metas tanto na personagem…
Bedla.- Perdão! Tinha esquecido… E então?

     Tator arranca um bem-me-quer da fita e oferece-lho.

     Ah! Boa ideia!

     Coloca a flor na cabeça, como se fosse um chapéu, e segue as instruções de Duba.

Duba.- Bem. Cena do acampamento. Bedla no papel de Miss’s Morlay… Podes-te sentar, Bedla, na mesma flor que estavas ao princípio? Assim, com ar senhorial… Imagina que o chapéu é a grande efígie. Tu estás sentada ao pé… O guarda-sol… falta o guarda-sol… que alguém procure o guarda-sol… (Tator encontra-o e dá-lho) Bom. Tator, lembra-te da tua frase, eh? Enérgico, brilhante: “Está aqui o Tenente Barret. Pede licença para se apresentar!”. Continuamos… Mânio no papel de Barret… entras pela tua esquerda… Esse turbante… não é do vestiário… Ai! Mânio!… Enfim… Não esqueças, primeiro reservado, só tens que te mostrar apaixonado no final…

     Aparece pelo outro lado Naned, um rapazinho disfarçado de pajem árabe, com longas babuchas. Vem calado e com os braços caídos.

     Ora este… Naned! Não: agora não tens que sair. Já nós te avisamos… Vocês também, retirem-se… Todos aos seus lugares! Sorte rapazes…

     Retiram-se todos, em fila, pelas abas, como se as abas fossem caminhos curvos. Fica só Bedla, caracterizada de Miss’s Morlay, sentada, muito digna, na sua flor, com outra flor posta de chapéu, as suas cartucheiras atravessadas sobre o corpo e um guarda-sóis fechado entre as mãos. Avança, a afectar um ar marcial exagerado, Tator, que faz uma continência e anuncia.

Tator.- Apresenta-se o Tenente Barret, pede licença para se…(Cai na conta do seu erro, volta para trás e repete a entrada) Está aqui o Tenente Barret, apresenta-se para pedir licença…(atrapalha-se de novo, mas fica no sítio, repete só a continência e, com o rosto vermelho, a berrar insiste) Está aqui o Tenente Barret… pode passar?
Voz de Duba.- (Desde fora e num sussurro) Bravo, Tator!

     Bedla faz um gesto de consentimento com o guarda-sol.

     …(Igual) Agora retira-te…

     Tator vai-se, com o mesmo ar marcial com que chegou. Ao mesmo tempo Mânio vem do fundo. Quando passa a seu lado Tator dá-lhe uma palmada de ânimo.

Mânio.- (A fazer uma continência diante de Bedla) Miss’s Morlay… Trago ordem do Estado Maior para me apresentar ante si… (Fica com a cabeça levemente inclinada e fala num sussurro) O que faço agora… não tenho o papel…
Duba.- (A assomar a cabeça por cima do chapéu, a sussurrar) E isso que tem? Faz de conta…

     Mânio faz de conta que lhe dá um papel.

Bedla.- (A fazer de conta que o lê) Acha estranha esta ordem, tenente, não é?
Mânio.- Nunca me questiono as ordens, umm (hesita)… devo chamar-lhe “Sire”?
Bedla.- Chamou-me correctamente antes… Eu sou Miss’s Morlay, e este regimento pertence-me. De onde é, tenente?
Mânio.- Sou de Gales… Miss’s Morlay.
Bedla.- Também não tem que repetir o meu grau militar com cada frase… Mas sente, Tenente, faça favor…

     Mânio procura assento, mas não encontra. Decide finalmente sentar no chão, quer dizer no chapéu. Ela então põe-se de pé. Ele levanta-se de imediato. Ela sorri e faz uma indicação de continuar.

     Faça favor… Não tem pressa, não é verdade, Barret? Nas noites do deserto não há melhor coisa a fazer que conversar uns com outros baixo o olhar da Lua. Estava-lhe a dizer…?
Mânio.- Que este regimento lhe pertence, Miss’s… (morde a língua)
Bedla.- Pois, senhor Barret… o oitavo regimento de sapadores pertence aos Morlay desde a época do Rei Jorge III, que lhes veio por uma certa consanguinidade com os Duques de Kensington, que antes deles o tinham. Eu herdei-o do meu defunto esposo, mas ele já o tinha herdado do pai, e o pai do avô etc.
Mânio.- Mas não é tão frequente…
Bedla.- …que o herde uma mulher? Aconteceu que meu esposo morreu das febres, a pouco de chegarmos, e não tínhamos filhos, nem ele irmão, nem varão algum, em linha direita, que o pudesse herdar…

     De repente, do alto do chapéu salta Áddis ao vazio e põe-se a voar de flor em flor. Aparece então Duba, que a admoesta.

Duba.- Tens que esperar, para polinizar, que acabem as histórias…
Áddis.- (A regressar, incomodada) Sempre falha qualquer coisa e mandas repetir…

     Desaparecem ambos. Bedla continua.

Bedla.- (a retomar o fio) … e como, aliás, não existe impedimento legal… mas o costume de as mulheres renunciarem à transmissão, eu, que não podia sonhar com melhor presente que um regimento de sapadores, para escândalo da colónia e a metrópole, decidi ficar com ele.
Mânio.- Posso perguntar para que é que quer Miss’s Morlay um regimento de sapadores?

     A mão do Dr. Alexandrino Constante empurra então o microfone para o centro do cenário, e volta a se ouvir a sua voz.

Voz do Dr. Alexandrino Constante.- Com aquele regimento de sapadores, providencialmente herdado do seu defunto esposo, foi como Miss’s Morlay pôde encetar por fim os seus trabalhos de arqueologia. É preciso salientar que Miss’s Morlay foi sempre uma escrupulosa cumpridora das ordens do Estado Maior, e que não dispôs do regimento, como se diz, ao seu bel-prazer… Simplesmente, lá onde as ordens superiores a enviavam, ela mandava “escavar trincheiras”, em lugares mais estratégicos do ponto arqueológico que do militar… E quando algum oficial recém incorporado fazia notar a estranha disposição das suas defesas, ela sempre respondia, com um suspiro…

     A interrupção do Dr. Alexandrino provocou uma grande confusão e desordem no grupo. Saem todos os que se tinham retirado para trás. Mânio levanta-se do chão. Duba aparece também a caminhar pela aba do chapéu. Traz um caderno (presumivelmente com o texto) na mão. Todos olham para o microfone e discutem. Aproveitando a confusão, Áddis começa a polinizar. Detém-se diante de alguma flor e fala para o seu interior como se fosse o funil de um gravador de discos de cera, como o de Edison. Diante doutras, porém, limita-se a pôr o ouvido como se fosse o altifalante de um velho gramofone.

Áddis.- (Antes de se pôr a polinizar, a Duba) Estás a ver como nunca se acaba de contar…?

     Finalmente decidem actuar. Dirigem-se para o microfone, empurram-no em sentido contrário, a voz vai diminuindo até se perder, e eles regressam para o chapéu.

Duba.- Não há problema! Não há problema… Podemos mesmo aproveitar a interrupção para ligar com a cena da trincheira… Que Bedla e Mânio subam para o alto do chapéu… Mânio, não esqueças a capa branca… nem tu Bedla o xaile… para o efeito do vento. Tator, tu aqui, em baixo, sempre a cavar… é uma cena importante… tens que sentir com intensidade cada pancada no chão…

     Bedla e Mânio sobem para o alto do chapéu. Tator não espera para se pôr a cavar com uma picareta dourada. A cada pancada detém-se e faz exageradas contorções. Áddis, no entanto, tem reparado na presença do microfone e vai, sempre a voar, até ele.

Áddis.- Oh! Que estranha flor! Vou ver se posso polinizar uma destas!

     Fica detida diante do microfone, suspensa no ar pelo contínuo agitar de asas e alguma corda preta de segurança. Fala num sussurro, que nos chega agora através dos altifalantes da sala.

     …Olha a atrevida! Disse-me o lilás que tinha um regimento de sapadores para ela só. Uma menina da sua formação… O que farão toda a noite no deserto, longe das famílias!

     Duba descobre-a e chama-a.

Duba.- (A repreender) Áddis!! Seja boa, espere só um bocadinho. Olhe que a seguinte cena tem muito néctar!

     Áddis deixa o microfone e retira-se, a voar, para trás do chapéu. Duba repara então em Naned, que ficou de pé na trincheira (quer dizer na aba do chapéu) a olhar como Tator cava e contorce.

     Eh! Este não tem que estar aqui… Olha, rapaz, vai para teu sítio e ficas lá quietinho até a gente te chamar… Compreendes?

     Naned retira-se, com os braços caídos e em silêncio. Bedla e Mânio estão já no alto, de pé, perto do canto do chapéu, o vento a agitar o xaile dela e a capa dele. Em baixo Tator, sempre a cavar com emoção. Duba retira-se ele próprio, sem deixar de dar, durante o caminho, as últimas instruções.

     Eliminamos toda a parte introdutória… (Consulta o texto)… Bedla, podes ligar directamente com a última frase que disse a nuvem essa…
Bedla.- (Depois de um suspiro) …nunca se sabe por onde é que podem atacar os beduínos, tenente Barret…
Mânio.- Mas, de aqui, somos alvo fácil para o inimigo, venha de onde vier…
Bedla.- Olhe, Barret, sempre cumpri escrupulosamente as ordens que me deram do Alto Mando… Mas a política colonial não é comigo… Não me preocupa o domínio do Egipto actual… Estamos a ocupar, sem o saber, o solo de um império más forte e mais antigo… Um império que há milhares de anos desapareceu… e de que poderíamos tirar lições interessantes para o nosso… Mas os impérios derrotados são muito mais difíceis de conquistar que aqueles que estão ainda em pé…
Mânio.- Nunca entenderei como é que uma menina, desculpe… uma senhora inglesa, de tão ilustre família pode ter vindo parar neste pedaço perdido de deserto, afinal para remexer na areia à procura de coisas inúteis e rotas…
Bedla.- Inúteis e rotas… Verá, Barret, na minha casa de Yorkshire existe um velho ulmeiro que dá sombra ao muro ocidental do seu jardim… Costumávamos brincar a redor dele, quando pequenos, a cantar, de mãos dados, uma antiga canção…

     Aparece, por trás dela, a cabeça de Duba, apanha ambos pelos ombros e detém-nos.

Duba.- Desculpem, está a ficar muito lindo… mas falta Ahós… (A gritar) Ahós! Onde se esconde? Ahós!
Tator.- (Sem deixar de cavar) Deveu ficar adormecido, como sempre. Se posso interromper… vou à sua procura…
Duba.- Mas vai, Tator… e deixa isso: conseguirás perfurar afinal, na verdade, o chapéu…

     Tator vai, a limpar o suor, para a parte traseira do chapéu. No entanto, a mão do Dr. Alexandrino volta a aproximar o microfone.

Voz do Dr. Alexandrino Constante.- A sua inclinação para a arqueologia vinha já de, quando menina….

     Duba salta do alto do chapéu e vai correndo para o microfone, empurra-o e a voz extingue-se de novo.
     Volta Tator trazendo, de uma mão, um velho de cabelo branco e barba incipiente com fato marinheiro, casaco e calças escuras, camisola azul e roída. Na outra mão suporta uma harpa estranha. A sua moldura tem a forma do lóbulo exterior da orelha. O pavilhão auditivo do ar: uma orelha esquemática, com o interior vazio, atravessada de cordas tensas. Ahós, por sua parte, traz na mão um banquinho pequeno de madeira.
     Duba, que regressa do microfone, aproveita para conduzi-lo, pelo braço até ao seu posto (sobre a aba esquerda).

Duba.- Você sente aqui, Ahós, e espere o sinal. Não se preocupe de entoar: um pouco destemperado fica mais típico.

     Ahós senta-se no banquinho. Pega na harpa, que sustinha Tator, e começa a experimentar as cordas. Duba dirige-se então aos outros.

     Bom, vamos retomar desde “Na minha casa de Yorkshire…”…Tator, que é o que andas a fazer assim… Tens que te mudar… caracterização do irmão dela… Não faz falta que tires isso, põe qualquer coisa por cima… Não penso que elas se importem…

     Tator vai correndo para trás. Tira umas calças curtas e veste-as por cima da malha.

     Para Bedla chega com tirar as cartucheiras e o casaco de exploradora…
Bedla.- (A tirar) Mas, olha… onde é que falo, cá em cima ou lá em baixo…
Duba.- Pois não tinha reparado no problema. Há tanto que não representámos esta parte! Tens que falar de cima, como adulta, mas tens que actuar em baixo, como pequena… (Parece ter uma ideia. Hesita. Finalmente decide) … Podemos aproveitar, pois não!… Áddis, ó Áddis!
Áddis.- (A assomar no alto do chapéu) Não pretenderás que polinize esta miséria…!
Duba.- Atende: é a tua grande oportunidade. Uma actuação estelar. Estás a ver aquela flor cinzenta? (Acena para o microfone)… Pois vai para ela, e poliniza a história à medida que ela se produz… percebes?
Áddis.- E isso, não será uma perversão?
Duba.- É… um recurso dramático.
Áddis.- Ah!

     Áddis parece se conformar com a explicação e vai, a voar, até ao microfone, onde espera, com bates impaciente de asas, o sinal.

Mânio.- (Desde o alto) E eu que faço, no entanto?
Duba.- (Vai-se retirando sem deixar de falar) Tu fica aí acima. Podes-te sentar no canto e observar atentamente a cena. É como se estivesses a visualizar o que ela diz.

     No caminho encontra Ahós, que ficou adormecido, deitado sobre umas flores do chapéu, com a orelha da harpa baixo a dele.

     Mais um esforço, Ahós, mais um esforço…

     Retira-se. Antes faz um sinal para Áddis, que estava a olhar para atrás entre uma e outra batida de asa. Ahós começa a tocar a harpa, antes de Áddis decidir-se a falar.

Áddis.- Na minha casa de Yorkshire existe um velho ulmeiro que dá sombra ao muro ocidental do seu jardim… Costumávamos brincar a redor dele, quando pequenos, a cantar, de mãos dadas, uma antiga canção…

     Aparece pela direita Bedla, com uma camisa branca e a mesma saia. Pela esquerda Tator, com as calças curtas, a imitar exageradamente uma criança. Ahós começa a cantar. Bedla e Tator correm, de mãos dadas, todo a redor do chapéu.

Ahós.- Fala o meu ouvido ao teu ouvido,
          como os búzios, que falam em silêncio:
          - Que ouves quando os pássaros calaram
          e o vento já não range nas ramadas?
          - Ouço o coração do melro
          e o murmúrio subterrâneo das raízes.

     Continua, por baixo da voz de Áddis, a harpa só, cada vez com um som mais lento e fraco.

Áddis.- Um dia, à idade de nove anos, meu irmão por brincar, roubou meu prato de porcelana decorada…

     Bedla e Tator começam agora a perseguirem-se a redor do chapéu.

     Nossos pais ofereceram-nos a ambos, dois pratos, cada um com o nome do seu dono gravado em letras esmaltadas, a um lado, e um desenho diferente no centro. O meu tinha um barco, e o dele um cavalo.

     Bedla desaparece momentaneamente por trás. Tator vem, a correr, pelo lado contrário, mas bate contra Ahós, que voltou a ficar adormecido nas flores, com a harpa de almofada. Tator esbarra e fica a olhar para as suas mãos atordoado.

     Quis a fatalidade que o meu irmão rompesse acidentalmente aquele prato, e, um pouco por troçar, e um pouco, também, por medo de mim, decidiu esconder os cacos resultantes, em dois diferentes lugares, que achou procedimento mais seguro …

     Tator procura entre as flores algum esconderijo. Deixa um dos supostos cacos em baixo de uma dália, na parte dianteira, e o outro um pouco mais para além, num lateral. Recua, satisfeito, e, nesse momento, Bedla apanha-o por trás.

     Quando eu fui perguntar-lhe pelo prato, ele jurou que o não roubara, nem quebrara, e ainda acrescentou.

     Tator, depois de amostrar as mãos para que veja que nada leva nelas, fala, por um momento, com a sua própria voz.

Tator.- E juro que não o tenho escondido no jardim!

     Bedla larga-o. Ele retira-se e ela senta-se no chão, a brincar com uma pá pequena.

Áddis.- Mas um dia, quando já o tinha esquecido, estando a brincar ao pé do velho ulmeiro, casualmente, ao remexer na terra, encontrei um dos fragmentos. Nunca na minha vida tive uma alegria maior. Ali estava ele, quebrado, é certo, e com a metade do meu nome apenas… Mas estava, era o meu prato e tinha vindo a mim, como de improviso… Imediatamente comecei a procurar a outra metade… Sem nada conseguir. Até que decidi que havia meios mais directos de o fazer.

     Bedla, que esteve a mimar todo o relato de Áddis, sai correndo para trás, a empunha a sua pá na mão. Aparece então, pelo outro lado Tutor a correr e ela trás dele. Apanha-o, deita-o pelo chão e ameaça-o pondo a pá na sua garganta.

     Mas, quando já estava para confessar o lugar onde escondera o outro fragmento, pensei melhor e disse: cala! Não me vais gorar outra alegria.

     Bedla ergue-se e deixa fugir Tator, que vai para trás. Ela acocora-se diante da flor e faz que deposita um objecto. Logo vai-se retirando e vestindo lentamente a casaca e as cartucheiras.

     Decidi dilatar aquele momento de triunfo que ia de um fragmento a outro, e voltei a enterrar o primeiro ao pé do ulmeiro, porque me parecia que o lugar mais apropriado para esperar pelo seu par. Jamais o encontrei, mas eu sei que ainda tenho um pedaço de alegria imprevista que me espera nalgum lugar do meu jardim de Yorkshire, onde, por certo, se canta, ao chegar a primavera, uma triste canção…

     Bedla vai subindo de novo ao alto do chapéu, pondo um pé na mão que Tator lhe oferece como escada. Duba, a espreitar por trás, do outro lado, tenta fazer acordar Ahós, que voltou a adormecer.

Duba.- (A sussurrar) Vamos, Ahós, que tens que dar tempo para ela chegar ao pé de Mânio…

     Ahós acorda. Toca a Harpa e canta melancólico. Áddis regressa, a sobrevoar o chapéu e a começar nova polinização nas suas flores.

Ahós.- É tão alegre passeares entre as flores
          quando as esmalta Maio sobre os campos!
          Mas ninguém perguntou o que elas pensam
          quando tu passas e elas vão ficando
          mudas e sós, para sempre, trás de ti.

     Bedla chega ao pé de Mânio e senta, como ele, no canto do chapéu. Continua o fundo de harpa.

Bedla.- E foi assim, tenente Barret, que penso que, se me tenho dedicado à arqueologia, e se tenho chegado, a furar o chão, até aqui, não é por outra causa que buscando esse fragmento escondido do meu prato…

     Mânio põe-se de pé, a capa ao vento, e faz um continência, a falar grave. Bedla põe-se de pé, a olhar para ele, sem compreender.

Mânio.- É o meu dever de oficial advertir-lhe lealmente da minha firme vontade de desertar deste Regimento.
Bedla.- Que acontece, tenente, não suporta estar às ordens de uma mulher?
Mânio.- Este regimento pertence-lhe, e eu pertenço a ele. Dalguma maneira pertenço-lhe por lei…
Bedla.- E então…?
Mânio.- Amanhã, sem demora, desertarei à alva… Para me poder entregar, voluntário, antes da noite!

     Ficam a fazer a continência. Ela olha-o de frente, com um sorriso, o xaile ao vento. Ahós, que continuou milagrosamente a tocar a harpa, conclui a sua intervenção com acompanhamento de voz.

Ahós.- Mas ninguém perguntou o que elas pensam
          quando tu passas e elas vão ficando
          mudas e sós, para sempre, trás de ti.

Aparece por trás deles Duba a sorrir e aplaudir. Também aparece Tator por trás a aplaudir. Naned, que apareceu trás dele, fica todo o tempo a olhar para Ahós que, ao acabar o canto, caiu de repente, completamente adormecido, sobre as flores.

Duba.- Bravo! Bravo, rapazes, conseguimos acabar uma cena inteira! Já não podemos dizer que tenha corrido mal a tarde… Poliniza, boa Áddis… Podes polinizar quanto quiseres… Que te disse? Há néctar abundante!

     Ébria de néctar Áddis vai, a fazer piruetas, até ao microfone, que tenta polinizar.

Áddis.- Parece que há namoro! Contou-mo a papoila, que ela, nisso, nunca se engana…

     Mas a mão do Dr. Alexandrino, inopinadamente, empurra o microfone outra vez para diante, batendo à pobre Áddis no focinho.

     Ah! Atacou-me… Estava eu a falar com uma planta carnívora!

     Desaparece trás o chapéu, onde os outros continuam, por baixo da voz do Dr. Alexandrino, a discutir a seguinte cena.

Voz do Dr. Alexandrino Constante.- Foi com este regimento de sapadores que um dia, estando acampados perto de Abu Simbel, aonde foram destinados por causa do conflito de Sudão, encontrou Miss’s Morlay a placa de argila que, correndo o tempo, chegaria a ser conhecida como a Tábua Ocre de Núbia.
     Esta descoberta, motivo pelo qual nos encontramos hoje reunidos, a debater e a honrar a sua memória, converteu-a numa lenda viva, e talvez por isso a sua vida, a partir de aqui, se converteu também numa outra lenda. Sabemos que, a partir de então, consagrou todos os seus esforços a tentar encontrar o restante fragmento da placa… E que foi tal o seu empenho que chegou a enfrentar-se abertamente com os seus superiores. Pode que por isso toda essa parte da sua vida resulte um tanto obscura. Tem-se discutido muito acerca da existência desse segundo fragmento, e o que terá sido dele porque, de facto há quem assegura que o chegou a encontrar, guardado num cofre de características similares ao primeiro. A verdade é, contudo…

     Interrompe-se de repente a sua voz. Áddis está a puxar, por trás, do cabo do microfone, até quase o levar fora da cena.

Áddis.- Cala, egoísta, usurpadora! Vamos ficar sem história! Deixarás polinizar um pouco aos outros?!

     No entanto, os outros já conseguiram compor a cena. Bedla e Mânio, no alto do chapéu, de mangas recolhidas, e nas mãos respectivas pás douradas. Em baixo, na aba, Tator a carregar um pesado cofre, que tenta depositar no nível superior, ao pé dele, no chão, a sua picareta. Ahós, num lateral, adormecido. Duba esconde-se, levando trás de si o incorrigível Naned.
     Mânio ajuda Tator a colocar o cofre no alto, e arrasta-o logo pelo chão.

Mânio.- Cá está! Que é o que diz? É esta?

     Bedla limpa de pó o cofre, que está coberto de inscrições hieroglíficas. Começa a decifrá-las lentamente, ao mesmo tempo que fala.

Bedla.- Esta é, Tony. Este cofre contém a parte que falta da Tábua encontrada na Núbia! Oh, Tony, dentro há-de estar, com certeza, a chave para decifrar o enigma!
Tator.- (Desde abaixo, a limpar o suor) Chave para o abrir é que não aparece.
Bedla.- (A lhe amostrar a pá) Chave? Cá tenho eu uma…

     Afasta Mânio e com a pá sustida com as duas mãos faz menção de ir abrir o tampo de uma pancada. Mas quando está para o fazer, e o gume da pá já aponta para o entalhe do tampo, detém-se, e, sem mudar de postura, fala para Mânio, com a face lívida.

     Anthony, Anthony… Não estás a ver? É que não compreendes?
Mânio.- Elizabeth, que acontece?
Bedla.- Não estás a ver? É a mesma postura que quando o meu irmão…! Está a acontecer mais uma vez.

     Tator, que está a olhar, de baixo, em linha com o seu rosto e a ponta da sua pá, começa a se escapulir discretamente.

Mânio.- Queres que eu abra…?
Bedla.- Ninguém! Que ninguém abra! Declaro este cofre segredo militar! Enganei-me com a inscrição. Contém documentos segredos do sultão de Khartum para os rebeldes. Quem tocar esse cofre, fuzilo-o! (Para Tator, antes de que desapareça da sua vista) Eh, você! Para baixo com ele outra vez!

     Mânio empurra-o de novo até ao canto, e Tator recolhe o cofre nas suas costas (com certo melindre, depois das ameaças dela) e descarrega-o no chão.

     Não! Melhor: para cima outra vez!… Abu, onde está o meu fiel Abu?

     Tator volta a carregar o cofre e fica à espera. Aparece então Duba no alto, a fitar desde ali para todas partes.

Duba.- Naned… Naned… Naned, diabo, agora que tem que aparecer, desaparece… Ó Tator, que é o que estás a fazer com esse cofre… Pousa-o no chão e vai procurar Naned… faz favor!

     Tator deixa o cofre e vai para trás, trazendo o pequeno consigo.

     Bom, Naned, chegou o teu momento. Vais para trás e quando ela disser “Onde está o meu fiel Abu”, apareces tu, a caminhar, devagar, e ficas diante deste senhor do baú, compreendes? Tator, Tator… o cofre… ao alto!

     Tator volta a depositar o cofre nas suas costas. O pequeno fica no ponto, a olhar para ele.

     Ó Naned! Olá! Atende: agora tens que sair… Percebes? “Sair”. Depois “Abu…” entrar… Estás a ver? Agora, sair. “Abu…”, entrar.

     Naned não mexe.

     Tator, faz favor, deixa o cofre no chão e leva o menino até o seu lugar de espera…

     Tator não deixa o cofre, mas leva o menino, pela mão, para trás do chapéu.

Tator.- Prefiro fazê-lo assim, se não te importas…
Duba.- Bom… vamos continuar a partir desse ponto…(para Bedla)… “Abu…Abu…”

     Duba desaparece. Tator regressa, a correr, para o seu sítio.

Bedla.- Abu! Onde está o meu fiel Abu!

     Aparece Naned. Faz o seu caminho, fica diante de Tator, a olhar para o chão.

Naned.- É muito pesado, esse baú?

     Volta Duba desde o alto.

Duba.- Não, não… Não podes falar com ele… Tu és um rapazito berbere mudo, e os rapazitos berberes mudos não falam com os senhores que carregam cofres… Vamos para trás… Oh! Que tarde mais nefasta!

     Regressam todos para os seus postos.

Bedla.- Abu! Onde está o meu fiel Abu!

     Volta Naned. Fica diante de Tator, a olhar para o chão.

Naned.- Diga lá, minha senhora!

     Ouve-se primeiro um “Não” desesperado. Logo aparece Duba pelo mesmo lateral por que veio Naned, com as mãos na cabeça.

Duba.- Não! Não! Quem disse que este diabo era ideal para o papel, que nunca abria o bico?!
Tator.- (Cada vez mais curvado pelo peso do cofre) Fora da cena não fala… É só quando se mete no papel…
Duba.- (A sentar-se ao pé de Naned, compreensivo) Olha, Naned. Tu tens que interpretar o papel de Abu. Abu era um rapazito berbere mudo, que Miss’s Morlay tomara a seu serviço como guia e intérprete, por que dizia que era a única maneira de garantir que o seu guia e intérprete nunca lhe mentisse. E agora vai-lhe confiar a custódia do seu cofre, porque sabe que assim estará sempre a seguro o seu segredo… É um ardil que apreendeu dos antigos faraós…(Muito tenro) Sabes tu o que faziam os antigos faraós aos construtores das pirâmides para que nunca revelassem onde estavam enterrados? (pondo-se em pé, enérgico) Pois mandavam cortar-lhes a língua! De maneira que: fazemo-lo ao modo dos antigos faraós ou fazemo-lo ao meu modo!

     Naned foge, a correr para trás. Duba retira-se, a assoprar.

Bedla.- (realmente desesperada) Abu!! Onde está o meu fiel Abu!!!
Voz de Duba.- (Atrás, num sussurro) Bravo, Bedla, quanto sentimento!

     Entra Naned. Vai até Tator e fica calado, sempre a olhar para baixo, embora Bedla esteja a falar com ele de cima.

Bedla.- Abu, meu fiel Abu. Escolhe tu um lugar, ao teu capricho, no deserto, e enterra ali este cofre. Vai por um caminho e volta por outro diferente, de maneira que o homem que te acompanha não possa nunca recordá-lo.
Tator.- (Completamente curvado) Fique tranquila a senhora, que, nesta posição, não tenho assim umas grandes vistas da paisagem…
Voz de Duba.- (Atrás) Não improvises, Tator!
Bedla.- Mas sobretudo, Abu, nunca lhe digas a ninguém onde o enterraste. Nem sequer a mim própria, ainda que com lágrimas to suplicar. Vai, Abu. Tu que conheces como ninguém o deserto, porque é misterioso e calado como tu… (Não pode aguentar o riso) Ah! Não posso, não posso… não podemos tirar esta frase…
Voz de Duba.- Vamos… continuem… continuem…

     Naned gira 180º e começa a caminhar com Tator trás dele. Dão, assim, voltas e mais voltas ao chapéu. Ao passar sobre Ahós, que continua adormecido, Tator quase sofre uma escorregadela. Ahós acorda e, sem que ninguém lho diga, começa a tocar e cantar.

Ahós.- Fala o meu ouvido ao teu ouvido,
          como os búzios, que falam em silêncio:
          - Que ouves quando os pássaros calaram
          e o vento já não range nas ramadas?
          - Ouço o coração do melro
          e o murmúrio subterrâneo das raízes.

     Bedla leva as mãos à barriga e contorce-se pelo chão. Aparece Duba por trás.

Duba.- Obrigado Ahós, não fica mal essa cantiga para o tema do menino mudo… Mas tens razão, Bedla, toda esta parte está a mais… Vamos passar, se acharem bem, à cena da despedida…(A assinalar as voltas de Naned e Tator) Isto pode servir perfeitamente para representar o correr dos dias…

     Num dado momento reaparecem, por trás, Naned e Tator, este já sem cofre, mas com as costas igualmente curvadas. Então Naned detém-no.

Naned.- Não! Disse a senhora que tem que ser por um caminho diferente!

     Continuam a girar, sem cofre e em sentido contrário.

Duba.- Bom, precisamos só capas, vento e muito sentimento… Vamos trasladar a acção para baixo… Já me entendem, pela questão dos caminhos…

     Bedla embrulha-se no xaile e Mânio na capa, que ficaram deitados pelo chão. Começam a descer, ajudados por Duba.

     Lembra Mânio, é ela. É Miss’s Morlay, e é a última vez que alguém a viu…

     Situam-se na mesma posição que no começo, na parte dianteira do chapéu, mas de pé. Chegam então Naned e mais Tator, que vão bater com eles. Duba volve-se para eles, e vai-se retirando, a empurrá-los corriqueiramente.

     Eh, vocês! Deixem de fazer tempo!

     Todos desaparecem.

Bedla.- (A se afagar no xaile) Bom, Tony, toca a despedida. Não te quis contar antes, mas há uma semana enviei ao governador a minha renúncia. No correio de amanhã chegará, com certeza, a ordem com a sua aceitação. Não. Não digas nada. É melhor assim. A guerra vai para o Sul e eu vou para o Oeste. Parto logo com um grupo de nativos.
Mânio.- Não te deixarei partir! Sabes bem que, no caso de suspensão do capitão, assome o primeiro oficial essas funções. Ninguém sairá do acampamento esta noite!
Bedla.- Tenente Barret, o senhor conhece o código militar tão bem como eu. Sabe que até amanhã o capitão sigo a ser eu. Não cometa um acto de insubordinação que pudesse custar-lhe a sua carreira!
Mânio.- Se partir é um caso claro de abandono. Não tenho que esperar a chegada da sua suspensão.
Bedla.- E quem disse que escapo? Ainda estou ao mando, e acabo de decidir fazer um reconhecimento nocturno. Os beduínos, como o tenente sabe bem, podem atacar por qualquer sítio e em qualquer momento.

     Mânio faz um gesto de rendição. Ela abraça-o e logo afasta-se.

     Oh, Tony, sabes que é preciso fazê-lo! Eu já fui mulher de um capitão e não suportaria voltar a ser de um outro, ainda que esse fosses tu. Vou sair agora mesmo por essa porta e não tentes impedi-lo, porque sou capaz de comprar uma caravana de berberes e arrasar-te!

     Voltam a se abraçar e separar. Ela vai-se afastando dele pela curva de caminho da aba. Logo vira-se para ele com um sorriso.

     Não te surpreenda: vou à procura da Tábua. Vou dedicar a vida a essa procura. E sabes uma coisa: espero demorar muito a encontrar…
Mânio.- Amanhã, a minha primeira ordem será enviar uma patrulha à tua procura.
Bedla.- Estás a ver…? Todos procuramos sempre qualquer coisa que nos foge…

     Vai seguir o caminho.

Mânio.- Não posso ver-te partir, Elisabeth! (A fazer uma continência, em posição de firmes) Peço licença para me retirar, meu capitão!
Bedla.- Licença concedida, tenente. (A imitar sem muito ênfase uma continência no chapéu de flores) Ah, e boa caça, capitão!

     Vão-se cada um por uma aba diferente do chapéu. Áddis aparece pela parte superior e lança-se ao vazio e a polinizar, com lágrimas nos olhos.

Áddis.- Sempre temos que deixar o pólen mais amargo para o final!

     A mão do Dr. Alexandrino aproxima de novo o microfone da boca que não tem.

Voz do Dr. Alexandrino Constante.- Mas, nem o tenente Barret a encontrou ao dia seguinte, nem ninguém voltou nunca a mais a ver. Conta a lenda que o tenente Barret encontrou, mas a Tábua, a cuja procura acabara dedicando-se, julgando ser o caminho mais curto para chegar a Miss’s Morlay. E ainda conta a lenda que, se esse fragmento da Tábua não se encontra hoje em dia em nenhum museu, é porque, muitos anos depois, uma fria manhã de Novembro, se apresentou na casa da família, em Yorkshire, um oficial de gala, a pedir licença para visitar o jardim e render-lhe uma derradeira homenagem à já célebre e desaparecida arqueóloga. E dizem que foi até ao pé daquele ulmeiro…

     Aparece Mânio pela volta de caminho da aba e vai até ao centro do chapéu. Lá, em baixo da mesma flor em que o fizera Bedla, faz que introduz um objecto que não se vê.

     …e que ali enterrou o outro fragmento da Tábua Ocre de Núbia, junto com o pedaço de prato em que ainda se lia a metade do seu nome, com uma nota manuscrita em que dizia, por se ela voltasse e o encontrasse: “Depois de muito pensar, achei que era com este fragmento com que melhor encaixava”. E que depois, posto em pé, fez a sua continência, e formulou a frase de rigor.
Mânio.- Peço licença para me retirar, meu capitão!
Voz do Dr. Alexandrino Constante.- E que ficou, assim, sem se mover, durante horas ao não receber resposta, até que o foram resgatar os caseiros do lugar…

     Aparecem, por trás, todos os outros e chegam até Mânio e sacodem-no, até que recupera o movimento. E então tira o boné, desfaz o turbante e enxuga as lágrimas com ele.

Mânio.- Ah! Miss’s Morlay, por que tiveste que desaparecer…

     Os outros consolam-no e fazem coro.

Bedla.- Quem poderá encher o vácuo do teu chapéu…
Tator.- Ah! Quando voltaremos a sentir as cócegas dos teus cabelos, nos interstícios da palha…
Áddis.- Quando poderei polinizar a notícia do regresso?
Naned.- (Para Duba) Posso desejar que volte?

     Duba assente e ambos dizem, sem deixar de chorar, a coro:

Naned e Duba.- Volta, Miss’s Morlay, volta!
Mânio, Bedla e Tator.- Todos te necessitamos, volta!
Áddis.- (A acariciar as flores) Elas te necessitam, volta!

     As mãos do Dr. Alexandrino começam a fazer girar de novo, lentamente, o chapéu. Eles não deixam de falar por isso, um pouco mais animados, empurrados por esse carrossel. Duba afaga-os enquanto se vai perdendo a sua voz.

Duba.- Vamos rapazes… Amanhã voltaremos a representar a cena do encontro, e a do jardim também… Vão ver, tenho algumas ideias… Podíamos aproveitar essa flor nova, para…
Voz do Dr. Alexandrino Constante.- E ainda conta a lenda, finalmente, que uma tropa de génios benéficos, um pouco beduínos e um pouco shakespearianos, continua a dar vida ao seu chapéu, repetindo dia a dia a sua história e os seus sonhos, para que as flores que o habitam não saibam a falta dela… E, se não, como se explica que as flores que podem ver, estejam hoje ainda vivas, igual de vivas e alegres que o dia em que as próprias mãos dela as prenderam no chapéu?

     Com o movimento do chapéu, que o arrasta deitado na sua aba, Ahós acorda, senta e começa a tocar a harpa, a cantar.

Ahós.- É tão alegre passeares entre as flores
          quando as esmalta Maio sobre os campos!
          Mas ninguém perguntou o que elas pensam
          quando tu passas e elas vão ficando
          mudas e sós, para sempre, trás de ti.

     O harpista perde-se na volta e apaga-se completamente a luz.

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