v2jguisantabuaocre016.html
Volta
a acender-se rapidamente a luz. Magda, sem avental,
continua a correr para frente. O cenário está
completamente limpo, com excepção de um único objecto.
Um expedidor de cones de gelado, mesmo diante da eterna
cortina de neve. |
Voz do Prof. Sandar
Constandhi.-
Era tarde de mais para chegar ao
concerto, mas Magda saiu correndo para a rua sem se preocupar
sequer de fechar a porta. A filha da senhora não demoraria já
muito em chegar. Não se importava. Sabia perfeitamente o que ia
acontecer. Parecia que andava estonteada, a vagar ao acaso pelas
ruas borbulhantes de gente do Domingo, mas ela levava um rumo bem
pensado
E, abrindo-se passo entre a multidão conseguiu
chegar logo ao passeio marítimo.
Detém-se
um momento e vira 180º. Descobre qualquer coisa na
cortina de neve. |
Ali
estava o posto dos gelados.
Magda
corre para o fundo. Apanha um cone no expedidor e
coloca-o na linha da cascata de neve, até que se enche e
desborda como um gelado creme. |
Pediu
um dos maiores, de creme. Isso foi tudo. Mas sentiu, mentes o
enchia o empregado, que, bem valera a pena. Que não ia nunca
verter mais uma lágrima de açúcar ou heroína, que era como
se, com todas as suas lágrimas tivesse feito um grande gelado.
Cinco minutos de felicidade que já não lhe poderiam roubar. E
começou a passear, sempre devagar, pela beira-mar, a saborear o
seu gelado
Vem
a caminhar para diante, não em linha recta, mas a traçar
uma ampla curva pelas margens da cena. Começa a diminuir
a luz e a soar a mesma melodia dantes. Umas mãos emergem
no meio da neve com um saxofone dourado. |
e
para ser feliz, completamente feliz, durante cinco minutos na
vida, bastou-lhe com saber que, naquele preciso instante, algures
numa praça da vila, estava o seu próprio moço a
tocar, num saxofone dourado, alguma melodia longínqua e melancólica
E foi feliz a olhar o mar entre sorvo e sorvo, a passear sem
pressa, como uma senhora
a esperar a chegada da polícia,
sorrindo de pensar a cara que iam pôr quando, ao lhe perguntarem
por que o tinha feito, ela simplesmente respondesse: por um
gelado de creme
Muda
radicalmente o tom de voz. |
E
o grande mérito da actriz era conseguir transmitir toda aquela
atmosfera de paz e de calor, com um vestido sem manga, quando não
deixava de nevar. Ah, e também era curioso que, para representar
a chegada da polícia, aproveitavam o sinal de alarme do próximo
bombardeio
Ouve-se
uma alarme antiaérea. Uma sombra de avião percorre a
zona do parco iluminada pelo sol. Faz-se escuro total e
cessa a música. No silêncio ouve-se a conclusão do
Prof. Sandar Constandhi. |
Ora
bem. O que eu digo é: porque não podíamos fazer, agora, nós,
com a Tábua Ocre de Núbia, o mesmo que estoutros fizeram com a
neve?
Voz do Secretário/Coordenador.- Muito
obrigados, professor Sandar Constandhi pela sua muito construtiva
dissertação
E agora peço-lhes uma especial atenção,
porque é uma honra para mim ceder o uso da palavra ao Ilustríssimo
Senhor Presidente da Academia Superior de Arqueologia Emocional,
Doutor Alexandrino Constante
Quadro IX
Os Sonhos de Misss Morlay
no seu Chapéu de Flores
Cena 1ª |
O
Doutor Alexandrino Constante, cujo busto aparece ao se
acender a luz, é um velho risonho de faces encarnadas,
cabelo branco e abundante, e fato impecável. As mãos,
aos laterais, tremem-lhe da emoção e consegue emitir
apenas um fraco fio de voz. |
Doutor Alexandrino
Constante.- É minha a honra de me poder dirigir a este
auditório
.
Tenta
aclarar a garganta, e com um esforço adicional recomeça. |
É
minha a honra de me poder dirigir a este auditório
Continua
sem se perceber bem. Há alguns sons confusos. As suas mãos
retiram-se para um lateral e regressam trazendo um enorme
microfone de mesa (um desses antigos, com forma de
alcachofra) que aproxima um pouco para si. |
É
minha a honra de me poder a este auditório para glosar a vida e
a figura de Misss Morlay, a quem, muito justamente, a
Organização deste Congresso, decidiu dedicar a presente e
solene sessão de homenagem. Misss Morlay não precisa, porém,
de apresentações, e não há praticamente director de
departamento de (de uma só atacada todo o texto entre aspas)
arqueologia analítica aplicada do novo império de Egipto
relativa ao curso médio do Nilo e as suas relações com a
criptografia clássica do mundo inteiro, que não conheça
a sua obra.
Nós não estaríamos aqui
reunidos hoje, se não fosse por ela. A nossa mestra, a nossa
pioneira. Ela vive em nós. Nos nossos trabalhos, estudos,
investigações. Pode-se mesmo dizer que está cientificamente
viva, porque ninguém poderá demonstrar nunca que está morta.
Porque ninguém, como todos nós sabemos, chegou jamais a vê-la
morta, e a sua imagem se há-de manter, assim, dentro de nós,
eternamente viva.
Alguns espíritos obtusos
sei que estarão a pensar nestes momentos: nascida em 1859 numa
muito nobre casa do Condado de Yorkshire, ao norte da Inglaterra,
hoje deveria contar com mais de 138 anos se continuasse viva!
Mas não é vã especulação
ou pretensiosa frase. Não. A sua memória (ou, mais do que isso,
uma parte da sua imagem, daquela presença irrepetível que ia trás
de si a perfumar o mundo) continua viva, hoje aqui, entre nós, e
vou demonstrá-lo com factos, científicos e irrefutáveis. Vou
demonstrá-lo usando os mesmos métodos que usamos para
demonstrar a existência de Tutancámon ou Nefertiti: a localização,
datação e verificação de restos arqueológicos materiais,
palpáveis e objectivos.
As
mãos saem pela direita e regressam com um chapéu de
palha, muito na moda colonial de fins de século. A copa
bastante rectilínea e as abas não demasiado largas. Tem
uma fita de cores a redor, em que se prendem um sem número
de flores vivas (ou que aparentam sê-lo). O seu tamanho,
nem é preciso dizer, corresponde perfeitamente com o das
mãos e a cabeça do Dr. Alexandrino Constante, ou talvez
seja duas talhas menos. As mãos ficam a sustê-lo,
nervosas, fazendo-o oscilar suavemente para um e outro
lado. |
Este
é o seu chapéu de flores. Aquele que ela levava o dia em que se
perdeu para sempre na imensidade do deserto, para os lados do Oásis
de Dakhia. Foi encontrado de forma casual, recentemente, por uma
caravana berbere, em cima de uma elevada ondulação de areia,
num lugar impreciso do deserto Líbio, que ficou baptizado, desde
então, como Dunadama, expressão do dialecto local
impossível de traduzir, mas cujo significado seria, mais ou
menos, a duna que parece uma senhora.
Ao
correr o pano, nesta ocasião, não se descobre nada
novo. As mãos, porém, do Dr. Alexandrino, a prolongarem
o seu vaivém nervoso, irão fazendo girar completamente
esse chapéu, como uma plataforma cenográfica. Nesse
movimento vão empurrando, aliás, sem dar por isso, o
microfone, que se afasta do centro do cenário, e isso
vai fazendo que vá minguado a sua voz até se perder
igual que o pano. |
Como
é sabido, Misss Morlay chegara a Egipto, a fins dos anos
oitenta do passado século, acompanhando o seu marido, o capitão
Morlay, que vinha ao mando de um regimento de sapadores que tinha
herdado do pai
.
Do
outro lado do chapéu aparece a figura de Bedla. Está
sentada sobre uma flor do chapéu, de caule longo e
curvado, cuja corola pousa sobre a aba. Bedla traz uma
espécie de combinação folgada. Vai descalça e esta a
depilar, deixando cair por diante a longa melena, umas
rosas diminutas que lhe crescem nas pernas.
Quando o chapéu deixa de
girar e Bedla fica no centro, a continuar a sua depilação
floral, surge, por trás do chapéu, Mânio. Vem ainda a
pôr a sua malha colada e colorida, e traz um turbante na
cabeça com uma pedra brilhante e uma pena azul. |
Mânio.- Ainda
assim, Bedla? É tarde, da-te pressa, vamos começar
Bedla.- (Sem deixar de o fazer) Não
pretenderás que actue com todas estas flores!
Mânio.- (A acabar de se vestir) Com a
saia longa, quem as pode ver?
Bedla.- Sinto-as eu e não consigo concentrar.
Fazem cócegas.
Por
trás do chapéu também, como a perseguir Mânio,
aparece Tator. É um indivíduo grosso e careca, que
veste uma malha parecida com a de Mânio, com a única
diferença de cobrir a cabeça com um boné de tropas
expedicionárias britânicas, branco, com forro vermelho
e um prolongamento de tecido semelhante a cair sobre a
nuca. Traz nas mãos um boné semelhante, que apresenta
para Mânio enquanto corre. |
Tator.- Mânio, Mânio,
esqueces o boné!
Mânio
colhe-o e tenta colocá-lo, mas não pode, evidentemente,
a pesar da ajuda fervorosa de Tator, que depois de vários
ensaios conclui, grave: |
Não
entra
a causa do turbante.
Mânio.- Eu sem turbante não saio!
Bedla.- Quem viu as minhas cartucheiras?
As
acções de todos se sobrepõem e misturam. Falam e
disputam amostrando uma certa psicologia infantil, embora
os corpos (a pesar da sua evidente pequenez respeito do
chapéu) sejam adultos. O ambiente é de preparativos de
função escolar. Bedla, acabou por abandonar a flor em
que senta, que volta a recuperar algo da sua louçania, e
foi para uma flor composta, prendida no outro lado do
chapéu, em cada uma de cujas ramificações aparecem
colocadas diferentes peças de roupa como se fosse um
bengaleiro. Aí vai-se vestindo, e não vê as suas
cartucheiras, mas estão penduradas de uma outra flor
mais pequena que assoma tão só um bocadinho além. |
Tator.- Tenho uma
solução!
Mânio.-
que não saia eu?
Tator.- Não: pores o turbante por cima do boné,
estás a ver?
Tira
o turbante de Mânio, coloca o boné e, por cima, o
turbante. Fica assim um estranho oficial britânico saído
das mil e uma noites. Mânio acha óptimo. É preciso
acrescentar que as malhas de ambos representam fardas do
exército expedicionário, com as suas levitas, botas,
galões, cordões de ouro etc. Tudo desenhado à tinta no
tecido, e colado ao corpo, como a malha.
Para acabar de confundir as
coisas aparece, de pé, no alto do chapéu, Áddis,
vestida com um disfarce de insecto não catalogado, com
toques de abelha, borboleta e libélula. |
Áddis.- É hoje
o dia que me deixem polinizar algumas histórias?
Sempre
fico para o final!
Aparece,
também no alto e trás dela, Duba. Dá-se ares de
director do espectáculo. Traz levita de verdade e um
barrete verde na cabeça. |
Duba.- Já chegará
a tua vez, Áddis
(Retira-a suavemente para o fundo.
Aos de baixo) Vamos lá, rapazes, são horas
Vamos
fazer a cena do acampamento
Bedla.- (Acaba de apertar as cartucheiras)
E o chapéu? Tinha que ser agora o chapéu! Alguém viu o chapéu?
Duba.- Estamos todos nós postos em cima dele,
Bedla
Também não é preciso que te metas tanto na
personagem
Bedla.- Perdão! Tinha esquecido
E então?
Tator
arranca um bem-me-quer da fita e oferece-lho. |
Ah!
Boa ideia!
Coloca
a flor na cabeça, como se fosse um chapéu, e segue as
instruções de Duba. |
Duba.- Bem. Cena
do acampamento. Bedla no papel de Misss Morlay
Podes-te sentar, Bedla, na mesma flor que estavas ao princípio?
Assim, com ar senhorial
Imagina que o chapéu é a grande
efígie. Tu estás sentada ao pé
O guarda-sol
falta
o guarda-sol
que alguém procure o guarda-sol
(Tator
encontra-o e dá-lho) Bom. Tator, lembra-te da tua frase,
eh? Enérgico, brilhante: Está aqui o Tenente Barret. Pede
licença para se apresentar!. Continuamos
Mânio no
papel de Barret
entras pela tua esquerda
Esse
turbante
não é do vestiário
Ai! Mânio!
Enfim
Não esqueças, primeiro reservado, só tens que te
mostrar apaixonado no final
Aparece
pelo outro lado Naned, um rapazinho disfarçado de pajem
árabe, com longas babuchas. Vem calado e com os braços
caídos. |
Ora
este
Naned! Não: agora não tens que sair. Já nós te
avisamos
Vocês também, retirem-se
Todos aos seus
lugares! Sorte rapazes
Retiram-se
todos, em fila, pelas abas, como se as abas fossem
caminhos curvos. Fica só Bedla, caracterizada de Misss
Morlay, sentada, muito digna, na sua flor, com outra flor
posta de chapéu, as suas cartucheiras atravessadas sobre
o corpo e um guarda-sóis fechado entre as mãos. Avança,
a afectar um ar marcial exagerado, Tator, que faz uma
continência e anuncia. |
Tator.- Apresenta-se
o Tenente Barret, pede licença para se
(Cai na conta do
seu erro, volta para trás e repete a entrada) Está aqui o
Tenente Barret, apresenta-se para pedir licença
(atrapalha-se
de novo, mas fica no sítio, repete só a continência e, com o
rosto vermelho, a berrar insiste) Está aqui o Tenente
Barret
pode passar?
Voz de Duba.- (Desde fora e num sussurro)
Bravo, Tator!
Bedla
faz um gesto de consentimento com o guarda-sol. |
(Igual)
Agora retira-te
Tator
vai-se, com o mesmo ar marcial com que chegou. Ao mesmo
tempo Mânio vem do fundo. Quando passa a seu lado Tator
dá-lhe uma palmada de ânimo. |
Mânio.- (A
fazer uma continência diante de Bedla) Misss Morlay
Trago ordem do Estado Maior para me apresentar ante si
(Fica
com a cabeça levemente inclinada e fala num sussurro) O que
faço agora
não tenho o papel
Duba.- (A assomar a cabeça por cima do chapéu,
a sussurrar) E isso que tem? Faz de conta
Mânio
faz de conta que lhe dá um papel. |
Bedla.- (A
fazer de conta que o lê) Acha estranha esta ordem, tenente,
não é?
Mânio.- Nunca me questiono as ordens, umm (hesita)
devo chamar-lhe Sire?
Bedla.- Chamou-me correctamente antes
Eu
sou Misss Morlay, e este regimento pertence-me. De onde é,
tenente?
Mânio.- Sou de Gales
Misss Morlay.
Bedla.- Também não tem que repetir o meu grau
militar com cada frase
Mas sente, Tenente, faça favor
Mânio
procura assento, mas não encontra. Decide finalmente
sentar no chão, quer dizer no chapéu. Ela então põe-se
de pé. Ele levanta-se de imediato. Ela sorri e faz uma
indicação de continuar. |
Faça
favor
Não tem pressa, não é verdade, Barret? Nas noites
do deserto não há melhor coisa a fazer que conversar uns com
outros baixo o olhar da Lua. Estava-lhe a dizer
?
Mânio.- Que este regimento lhe pertence, Misss
(morde a língua)
Bedla.- Pois, senhor Barret
o oitavo
regimento de sapadores pertence aos Morlay desde a época do Rei
Jorge III, que lhes veio por uma certa consanguinidade com os
Duques de Kensington, que antes deles o tinham. Eu herdei-o do
meu defunto esposo, mas ele já o tinha herdado do pai, e o pai
do avô etc.
Mânio.- Mas não é tão frequente
Bedla.-
que o herde uma mulher? Aconteceu
que meu esposo morreu das febres, a pouco de chegarmos, e não tínhamos
filhos, nem ele irmão, nem varão algum, em linha direita, que o
pudesse herdar
De
repente, do alto do chapéu salta Áddis ao vazio e põe-se
a voar de flor em flor. Aparece então Duba, que a
admoesta. |
Duba.- Tens que
esperar, para polinizar, que acabem as histórias
Áddis.- (A regressar, incomodada)
Sempre falha qualquer coisa e mandas repetir
Desaparecem
ambos. Bedla continua. |
Bedla.- (a
retomar o fio)
e como, aliás, não existe
impedimento legal
mas o costume de as mulheres renunciarem
à transmissão, eu, que não podia sonhar com melhor presente
que um regimento de sapadores, para escândalo da colónia e a
metrópole, decidi ficar com ele.
Mânio.- Posso perguntar para que é que quer
Misss Morlay um regimento de sapadores?
A
mão do Dr. Alexandrino Constante empurra então o
microfone para o centro do cenário, e volta a se ouvir a
sua voz. |
Voz do Dr. Alexandrino
Constante.- Com aquele regimento de sapadores,
providencialmente herdado do seu defunto esposo, foi como Misss
Morlay pôde encetar por fim os seus trabalhos de arqueologia. É
preciso salientar que Misss Morlay foi sempre uma
escrupulosa cumpridora das ordens do Estado Maior, e que não
dispôs do regimento, como se diz, ao seu bel-prazer
Simplesmente, lá onde as ordens superiores a enviavam, ela
mandava escavar trincheiras, em lugares mais estratégicos
do ponto arqueológico que do militar
E quando algum
oficial recém incorporado fazia notar a estranha disposição
das suas defesas, ela sempre respondia, com um suspiro
A
interrupção do Dr. Alexandrino provocou uma grande
confusão e desordem no grupo. Saem todos os que se
tinham retirado para trás. Mânio levanta-se do chão.
Duba aparece também a caminhar pela aba do chapéu. Traz
um caderno (presumivelmente com o texto) na mão. Todos
olham para o microfone e discutem. Aproveitando a confusão,
Áddis começa a polinizar. Detém-se diante de alguma
flor e fala para o seu interior como se fosse o funil de
um gravador de discos de cera, como o de Edison. Diante
doutras, porém, limita-se a pôr o ouvido como se fosse
o altifalante de um velho gramofone. |
Áddis.- (Antes
de se pôr a polinizar, a Duba) Estás a ver como nunca se
acaba de contar
?
Finalmente
decidem actuar. Dirigem-se para o microfone, empurram-no
em sentido contrário, a voz vai diminuindo até se
perder, e eles regressam para o chapéu. |
Duba.- Não há
problema! Não há problema
Podemos mesmo aproveitar a
interrupção para ligar com a cena da trincheira
Que Bedla
e Mânio subam para o alto do chapéu
Mânio, não esqueças
a capa branca
nem tu Bedla o xaile
para o efeito do
vento. Tator, tu aqui, em baixo, sempre a cavar
é uma cena
importante
tens que sentir com intensidade cada pancada no
chão
Bedla
e Mânio sobem para o alto do chapéu. Tator não espera
para se pôr a cavar com uma picareta dourada. A cada
pancada detém-se e faz exageradas contorções. Áddis,
no entanto, tem reparado na presença do microfone e vai,
sempre a voar, até ele. |
Áddis.- Oh! Que
estranha flor! Vou ver se posso polinizar uma destas!
Fica
detida diante do microfone, suspensa no ar pelo contínuo
agitar de asas e alguma corda preta de segurança. Fala
num sussurro, que nos chega agora através dos
altifalantes da sala. |
Olha
a atrevida! Disse-me o lilás que tinha um regimento de sapadores
para ela só. Uma menina da sua formação
O que farão
toda a noite no deserto, longe das famílias!
Duba
descobre-a e chama-a. |
Duba.- (A
repreender) Áddis!! Seja boa, espere só um bocadinho. Olhe
que a seguinte cena tem muito néctar!
Áddis
deixa o microfone e retira-se, a voar, para trás do chapéu.
Duba repara então em Naned, que ficou de pé na
trincheira (quer dizer na aba do chapéu) a olhar como
Tator cava e contorce. |
Eh!
Este não tem que estar aqui
Olha, rapaz, vai para teu sítio
e ficas lá quietinho até a gente te chamar
Compreendes?
Naned
retira-se, com os braços caídos e em silêncio. Bedla e
Mânio estão já no alto, de pé, perto do canto do chapéu,
o vento a agitar o xaile dela e a capa dele. Em baixo
Tator, sempre a cavar com emoção. Duba retira-se ele próprio,
sem deixar de dar, durante o caminho, as últimas instruções. |
Eliminamos
toda a parte introdutória
(Consulta o texto)
Bedla, podes ligar directamente com a última frase que disse a
nuvem essa
Bedla.- (Depois de um suspiro)
nunca
se sabe por onde é que podem atacar os beduínos, tenente Barret
Mânio.- Mas, de aqui, somos alvo fácil para o
inimigo, venha de onde vier
Bedla.- Olhe, Barret, sempre cumpri
escrupulosamente as ordens que me deram do Alto Mando
Mas a
política colonial não é comigo
Não me preocupa o domínio
do Egipto actual
Estamos a ocupar, sem o saber, o solo de
um império más forte e mais antigo
Um império que há
milhares de anos desapareceu
e de que poderíamos tirar lições
interessantes para o nosso
Mas os impérios derrotados são
muito mais difíceis de conquistar que aqueles que estão ainda
em pé
Mânio.- Nunca entenderei como é que uma
menina, desculpe
uma senhora inglesa, de tão ilustre família
pode ter vindo parar neste pedaço perdido de deserto, afinal
para remexer na areia à procura de coisas inúteis e rotas
Bedla.- Inúteis e rotas
Verá, Barret, na
minha casa de Yorkshire existe um velho ulmeiro que dá sombra ao
muro ocidental do seu jardim
Costumávamos brincar a redor
dele, quando pequenos, a cantar, de mãos dados, uma antiga canção
Aparece,
por trás dela, a cabeça de Duba, apanha ambos pelos
ombros e detém-nos. |
Duba.- Desculpem,
está a ficar muito lindo
mas falta Ahós
(A
gritar) Ahós! Onde se esconde? Ahós!
Tator.- (Sem deixar de cavar) Deveu
ficar adormecido, como sempre. Se posso interromper
vou à
sua procura
Duba.- Mas vai, Tator
e deixa isso:
conseguirás perfurar afinal, na verdade, o chapéu
Tator
vai, a limpar o suor, para a parte traseira do chapéu.
No entanto, a mão do Dr. Alexandrino volta a aproximar o
microfone. |
Voz do Dr. Alexandrino
Constante.- A sua inclinação para a arqueologia vinha
já de, quando menina
.
Duba
salta do alto do chapéu e vai correndo para o microfone,
empurra-o e a voz extingue-se de novo.
Volta Tator trazendo, de
uma mão, um velho de cabelo branco e barba incipiente
com fato marinheiro, casaco e calças escuras, camisola
azul e roída. Na outra mão suporta uma harpa estranha.
A sua moldura tem a forma do lóbulo exterior da orelha.
O pavilhão auditivo do ar: uma orelha esquemática, com
o interior vazio, atravessada de cordas tensas. Ahós,
por sua parte, traz na mão um banquinho pequeno de
madeira.
Duba, que regressa do
microfone, aproveita para conduzi-lo, pelo braço até ao
seu posto (sobre a aba esquerda). |
Duba.- Você
sente aqui, Ahós, e espere o sinal. Não se preocupe de entoar:
um pouco destemperado fica mais típico.
Ahós
senta-se no banquinho. Pega na harpa, que sustinha Tator,
e começa a experimentar as cordas. Duba dirige-se então
aos outros. |
Bom,
vamos retomar desde Na minha casa de Yorkshire
Tator,
que é o que andas a fazer assim
Tens que te mudar
caracterização do irmão dela
Não faz falta que tires
isso, põe qualquer coisa por cima
Não penso que elas se
importem
Tator
vai correndo para trás. Tira umas calças curtas e
veste-as por cima da malha. |
Para
Bedla chega com tirar as cartucheiras e o casaco de exploradora
Bedla.- (A tirar) Mas, olha
onde
é que falo, cá em cima ou lá em baixo
Duba.- Pois não tinha reparado no problema. Há
tanto que não representámos esta parte! Tens que falar de cima,
como adulta, mas tens que actuar em baixo, como pequena
(Parece
ter uma ideia. Hesita. Finalmente decide)
Podemos
aproveitar, pois não!
Áddis, ó Áddis!
Áddis.- (A assomar no alto do chapéu)
Não pretenderás que polinize esta miséria
!
Duba.- Atende: é a tua grande oportunidade. Uma
actuação estelar. Estás a ver aquela flor cinzenta? (Acena
para o microfone)
Pois vai para ela, e poliniza a história
à medida que ela se produz
percebes?
Áddis.- E isso, não será uma perversão?
Duba.- É
um recurso dramático.
Áddis.- Ah!
Áddis
parece se conformar com a explicação e vai, a voar, até
ao microfone, onde espera, com bates impaciente de asas,
o sinal. |
Mânio.- (Desde
o alto) E eu que faço, no entanto?
Duba.- (Vai-se retirando sem deixar de falar)
Tu fica aí acima. Podes-te sentar no canto e observar
atentamente a cena. É como se estivesses a visualizar o que ela
diz.
No
caminho encontra Ahós, que ficou adormecido, deitado
sobre umas flores do chapéu, com a orelha da harpa baixo
a dele. |
Mais
um esforço, Ahós, mais um esforço
Retira-se.
Antes faz um sinal para Áddis, que estava a olhar para
atrás entre uma e outra batida de asa. Ahós começa a
tocar a harpa, antes de Áddis decidir-se a falar. |
Áddis.- Na minha
casa de Yorkshire existe um velho ulmeiro que dá sombra ao muro
ocidental do seu jardim
Costumávamos brincar a redor dele,
quando pequenos, a cantar, de mãos dadas, uma antiga canção
Aparece
pela direita Bedla, com uma camisa branca e a mesma saia.
Pela esquerda Tator, com as calças curtas, a imitar
exageradamente uma criança. Ahós começa a cantar.
Bedla e Tator correm, de mãos dadas, todo a redor do
chapéu. |
Ahós.- Fala o
meu ouvido ao teu ouvido,
como
os búzios, que falam em silêncio:
-
Que ouves quando os pássaros calaram
e
o vento já não range nas ramadas?
-
Ouço o coração do melro
e
o murmúrio subterrâneo das raízes.
Continua,
por baixo da voz de Áddis, a harpa só, cada vez com um
som mais lento e fraco. |
Áddis.- Um dia,
à idade de nove anos, meu irmão por brincar, roubou meu prato
de porcelana decorada
Bedla
e Tator começam agora a perseguirem-se a redor do chapéu.
|
Nossos
pais ofereceram-nos a ambos, dois pratos, cada um com o nome do
seu dono gravado em letras esmaltadas, a um lado, e um desenho
diferente no centro. O meu tinha um barco, e o dele um cavalo.
Bedla
desaparece momentaneamente por trás. Tator vem, a
correr, pelo lado contrário, mas bate contra Ahós, que
voltou a ficar adormecido nas flores, com a harpa de
almofada. Tator esbarra e fica a olhar para as suas mãos
atordoado. |
Quis
a fatalidade que o meu irmão rompesse acidentalmente aquele
prato, e, um pouco por troçar, e um pouco, também, por medo de
mim, decidiu esconder os cacos resultantes, em dois diferentes
lugares, que achou procedimento mais seguro
Tator
procura entre as flores algum esconderijo. Deixa um dos
supostos cacos em baixo de uma dália, na parte
dianteira, e o outro um pouco mais para além, num
lateral. Recua, satisfeito, e, nesse momento, Bedla
apanha-o por trás. |
Quando
eu fui perguntar-lhe pelo prato, ele jurou que o não roubara,
nem quebrara, e ainda acrescentou.
Tator,
depois de amostrar as mãos para que veja que nada leva
nelas, fala, por um momento, com a sua própria voz. |
Tator.- E juro
que não o tenho escondido no jardim!
Bedla
larga-o. Ele retira-se e ela senta-se no chão, a brincar
com uma pá pequena. |
Áddis.- Mas um
dia, quando já o tinha esquecido, estando a brincar ao pé do
velho ulmeiro, casualmente, ao remexer na terra, encontrei um dos
fragmentos. Nunca na minha vida tive uma alegria maior. Ali
estava ele, quebrado, é certo, e com a metade do meu nome apenas
Mas estava, era o meu prato e tinha vindo a mim, como de
improviso
Imediatamente comecei a procurar a outra metade
Sem nada conseguir. Até que decidi que havia meios mais directos
de o fazer.
Bedla,
que esteve a mimar todo o relato de Áddis, sai correndo
para trás, a empunha a sua pá na mão. Aparece então,
pelo outro lado Tutor a correr e ela trás dele.
Apanha-o, deita-o pelo chão e ameaça-o pondo a pá na
sua garganta. |
Mas,
quando já estava para confessar o lugar onde escondera o outro
fragmento, pensei melhor e disse: cala! Não me vais gorar outra
alegria.
Bedla
ergue-se e deixa fugir Tator, que vai para trás. Ela
acocora-se diante da flor e faz que deposita um objecto.
Logo vai-se retirando e vestindo lentamente a casaca e as
cartucheiras. |
Decidi
dilatar aquele momento de triunfo que ia de um fragmento a outro,
e voltei a enterrar o primeiro ao pé do ulmeiro, porque me
parecia que o lugar mais apropriado para esperar pelo seu par.
Jamais o encontrei, mas eu sei que ainda tenho um pedaço de
alegria imprevista que me espera nalgum lugar do meu jardim de
Yorkshire, onde, por certo, se canta, ao chegar a primavera, uma
triste canção
Bedla
vai subindo de novo ao alto do chapéu, pondo um pé na mão
que Tator lhe oferece como escada. Duba, a espreitar por
trás, do outro lado, tenta fazer acordar Ahós, que
voltou a adormecer. |
Duba.- (A
sussurrar) Vamos, Ahós, que tens que dar tempo para ela
chegar ao pé de Mânio
Ahós
acorda. Toca a Harpa e canta melancólico. Áddis
regressa, a sobrevoar o chapéu e a começar nova
polinização nas suas flores. |
Ahós.- É tão
alegre passeares entre as flores
quando
as esmalta Maio sobre os campos!
Mas
ninguém perguntou o que elas pensam
quando
tu passas e elas vão ficando
mudas
e sós, para sempre, trás de ti.
Bedla
chega ao pé de Mânio e senta, como ele, no canto do
chapéu. Continua o fundo de harpa. |
Bedla.- E foi
assim, tenente Barret, que penso que, se me tenho dedicado à
arqueologia, e se tenho chegado, a furar o chão, até aqui, não
é por outra causa que buscando esse fragmento escondido do meu
prato
Mânio
põe-se de pé, a capa ao vento, e faz um continência, a
falar grave. Bedla põe-se de pé, a olhar para ele, sem
compreender. |
Mânio.- É o meu
dever de oficial advertir-lhe lealmente da minha firme vontade de
desertar deste Regimento.
Bedla.- Que acontece, tenente, não suporta
estar às ordens de uma mulher?
Mânio.- Este regimento pertence-lhe, e eu
pertenço a ele. Dalguma maneira pertenço-lhe por lei
Bedla.- E então
?
Mânio.- Amanhã, sem demora, desertarei à alva
Para me poder entregar, voluntário, antes da noite!
Ficam
a fazer a continência. Ela olha-o de frente, com um
sorriso, o xaile ao vento. Ahós, que continuou
milagrosamente a tocar a harpa, conclui a sua intervenção
com acompanhamento de voz. |
Ahós.- Mas ninguém
perguntou o que elas pensam
quando
tu passas e elas vão ficando
mudas
e sós, para sempre, trás de ti.
Aparece
por trás deles Duba a sorrir e aplaudir. Também aparece
Tator por trás a aplaudir. Naned, que apareceu trás
dele, fica todo o tempo a olhar para Ahós que, ao acabar
o canto, caiu de repente, completamente adormecido, sobre
as flores. |
Duba.- Bravo!
Bravo, rapazes, conseguimos acabar uma cena inteira! Já não
podemos dizer que tenha corrido mal a tarde
Poliniza, boa
Áddis
Podes polinizar quanto quiseres
Que te disse?
Há néctar abundante!
Ébria
de néctar Áddis vai, a fazer piruetas, até ao
microfone, que tenta polinizar. |
Áddis.- Parece
que há namoro! Contou-mo a papoila, que ela, nisso, nunca se
engana
Mas
a mão do Dr. Alexandrino, inopinadamente, empurra o
microfone outra vez para diante, batendo à pobre Áddis
no focinho. |
Ah!
Atacou-me
Estava eu a falar com uma planta carnívora!
Desaparece
trás o chapéu, onde os outros continuam, por baixo da
voz do Dr. Alexandrino, a discutir a seguinte cena. |
Voz do Dr. Alexandrino
Constante.- Foi com este regimento de sapadores que um
dia, estando acampados perto de Abu Simbel, aonde foram
destinados por causa do conflito de Sudão, encontrou Misss
Morlay a placa de argila que, correndo o tempo, chegaria a ser
conhecida como a Tábua Ocre de Núbia.
Esta descoberta, motivo
pelo qual nos encontramos hoje reunidos, a debater e a honrar a
sua memória, converteu-a numa lenda viva, e talvez por isso a
sua vida, a partir de aqui, se converteu também numa outra
lenda. Sabemos que, a partir de então, consagrou todos os seus
esforços a tentar encontrar o restante fragmento da placa
E que foi tal o seu empenho que chegou a enfrentar-se abertamente
com os seus superiores. Pode que por isso toda essa parte da sua
vida resulte um tanto obscura. Tem-se discutido muito acerca da
existência desse segundo fragmento, e o que terá sido dele
porque, de facto há quem assegura que o chegou a encontrar,
guardado num cofre de características similares ao primeiro. A
verdade é, contudo
Interrompe-se
de repente a sua voz. Áddis está a puxar, por trás, do
cabo do microfone, até quase o levar fora da cena. |
Áddis.- Cala,
egoísta, usurpadora! Vamos ficar sem história! Deixarás
polinizar um pouco aos outros?!
No
entanto, os outros já conseguiram compor a cena. Bedla e
Mânio, no alto do chapéu, de mangas recolhidas, e nas mãos
respectivas pás douradas. Em baixo, na aba, Tator a
carregar um pesado cofre, que tenta depositar no nível
superior, ao pé dele, no chão, a sua picareta. Ahós,
num lateral, adormecido. Duba esconde-se, levando trás
de si o incorrigível Naned.
Mânio ajuda Tator a
colocar o cofre no alto, e arrasta-o logo pelo chão. |
Mânio.- Cá está!
Que é o que diz? É esta?
Bedla
limpa de pó o cofre, que está coberto de inscrições
hieroglíficas. Começa a decifrá-las lentamente, ao
mesmo tempo que fala. |
Bedla.- Esta é,
Tony. Este cofre contém a parte que falta da Tábua encontrada
na Núbia! Oh, Tony, dentro há-de estar, com certeza, a chave
para decifrar o enigma!
Tator.- (Desde abaixo, a limpar o suor)
Chave para o abrir é que não aparece.
Bedla.- (A lhe amostrar a pá) Chave? Cá
tenho eu uma
Afasta
Mânio e com a pá sustida com as duas mãos faz menção
de ir abrir o tampo de uma pancada. Mas quando está para
o fazer, e o gume da pá já aponta para o entalhe do
tampo, detém-se, e, sem mudar de postura, fala para Mânio,
com a face lívida. |
Anthony,
Anthony
Não estás a ver? É que não compreendes?
Mânio.- Elizabeth, que acontece?
Bedla.- Não estás a ver? É a mesma postura
que quando o meu irmão
! Está a acontecer mais uma vez.
Tator,
que está a olhar, de baixo, em linha com o seu rosto e a
ponta da sua pá, começa a se escapulir discretamente. |
Mânio.- Queres
que eu abra
?
Bedla.- Ninguém! Que ninguém abra! Declaro
este cofre segredo militar! Enganei-me com a inscrição. Contém
documentos segredos do sultão de Khartum para os rebeldes. Quem
tocar esse cofre, fuzilo-o! (Para Tator, antes de que
desapareça da sua vista) Eh, você! Para baixo com ele
outra vez!
Mânio
empurra-o de novo até ao canto, e Tator recolhe o cofre
nas suas costas (com certo melindre, depois das ameaças
dela) e descarrega-o no chão. |
Não!
Melhor: para cima outra vez!
Abu, onde está o meu fiel
Abu?
Tator
volta a carregar o cofre e fica à espera. Aparece então
Duba no alto, a fitar desde ali para todas partes. |
Duba.- Naned
Naned
Naned, diabo, agora que tem que aparecer, desaparece
Ó Tator, que é o que estás a fazer com esse cofre
Pousa-o no chão e vai procurar Naned
faz favor!
Tator
deixa o cofre e vai para trás, trazendo o pequeno
consigo. |
Bom,
Naned, chegou o teu momento. Vais para trás e quando ela disser
Onde está o meu fiel Abu, apareces tu, a caminhar,
devagar, e ficas diante deste senhor do baú, compreendes? Tator,
Tator
o cofre
ao alto!
Tator
volta a depositar o cofre nas suas costas. O pequeno fica
no ponto, a olhar para ele. |
Ó
Naned! Olá! Atende: agora tens que sair
Percebes? Sair.
Depois Abu
entrar
Estás a ver? Agora,
sair. Abu
, entrar.
Tator,
faz favor, deixa o cofre no chão e leva o menino até o seu
lugar de espera
Tator
não deixa o cofre, mas leva o menino, pela mão, para trás
do chapéu. |
Tator.- Prefiro
fazê-lo assim, se não te importas
Duba.- Bom
vamos continuar a partir desse
ponto
(para Bedla)
Abu
Abu
Duba
desaparece. Tator regressa, a correr, para o seu sítio. |
Bedla.- Abu! Onde
está o meu fiel Abu!
Aparece
Naned. Faz o seu caminho, fica diante de Tator, a olhar
para o chão. |
Naned.- É muito
pesado, esse baú?
Duba.- Não, não
Não podes falar com ele
Tu és um rapazito berbere mudo, e
os rapazitos berberes mudos não falam com os senhores que
carregam cofres
Vamos para trás
Oh! Que tarde mais
nefasta!
Regressam
todos para os seus postos. |
Bedla.- Abu! Onde
está o meu fiel Abu!
Volta
Naned. Fica diante de Tator, a olhar para o chão. |
Naned.- Diga lá,
minha senhora!
Ouve-se
primeiro um Não desesperado. Logo aparece
Duba pelo mesmo lateral por que veio Naned, com as mãos
na cabeça. |
Duba.- Não! Não!
Quem disse que este diabo era ideal para o papel, que nunca abria
o bico?!
Tator.- (Cada vez mais curvado pelo peso do
cofre) Fora da cena não fala
É só quando se mete no
papel
Duba.- (A sentar-se ao pé de Naned,
compreensivo) Olha, Naned. Tu tens que interpretar o papel
de Abu. Abu era um rapazito berbere mudo, que Misss Morlay
tomara a seu serviço como guia e intérprete, por que dizia que
era a única maneira de garantir que o seu guia e intérprete
nunca lhe mentisse. E agora vai-lhe confiar a custódia do seu
cofre, porque sabe que assim estará sempre a seguro o seu
segredo
É um ardil que apreendeu dos antigos faraós
(Muito
tenro) Sabes tu o que faziam os antigos faraós aos
construtores das pirâmides para que nunca revelassem onde
estavam enterrados? (pondo-se em pé, enérgico) Pois
mandavam cortar-lhes a língua! De maneira que: fazemo-lo ao modo
dos antigos faraós ou fazemo-lo ao meu modo!
Naned
foge, a correr para trás. Duba retira-se, a assoprar. |
Bedla.- (realmente
desesperada) Abu!! Onde está o meu fiel Abu!!!
Voz de Duba.- (Atrás, num sussurro)
Bravo, Bedla, quanto sentimento!
Entra
Naned. Vai até Tator e fica calado, sempre a olhar para
baixo, embora Bedla esteja a falar com ele de cima. |
Bedla.- Abu, meu
fiel Abu. Escolhe tu um lugar, ao teu capricho, no deserto, e
enterra ali este cofre. Vai por um caminho e volta por outro
diferente, de maneira que o homem que te acompanha não possa
nunca recordá-lo.
Tator.- (Completamente curvado) Fique
tranquila a senhora, que, nesta posição, não tenho assim umas
grandes vistas da paisagem
Voz de Duba.- (Atrás) Não improvises,
Tator!
Bedla.- Mas sobretudo, Abu, nunca lhe digas a
ninguém onde o enterraste. Nem sequer a mim própria, ainda que
com lágrimas to suplicar. Vai, Abu. Tu que conheces como ninguém
o deserto, porque é misterioso e calado como tu
(Não
pode aguentar o riso) Ah! Não posso, não posso
não
podemos tirar esta frase
Voz de Duba.- Vamos
continuem
continuem
Naned
gira 180º e começa a caminhar com Tator trás dele. Dão,
assim, voltas e mais voltas ao chapéu. Ao passar sobre
Ahós, que continua adormecido, Tator quase sofre uma
escorregadela. Ahós acorda e, sem que ninguém lho diga,
começa a tocar e cantar. |
Ahós.- Fala o
meu ouvido ao teu ouvido,
como
os búzios, que falam em silêncio:
-
Que ouves quando os pássaros calaram
e
o vento já não range nas ramadas?
-
Ouço o coração do melro
e
o murmúrio subterrâneo das raízes.
Bedla
leva as mãos à barriga e contorce-se pelo chão.
Aparece Duba por trás. |
Duba.- Obrigado
Ahós, não fica mal essa cantiga para o tema do menino mudo
Mas tens razão, Bedla, toda esta parte está a mais
Vamos
passar, se acharem bem, à cena da despedida
(A
assinalar as voltas de Naned e Tator) Isto pode servir
perfeitamente para representar o correr dos dias
Num
dado momento reaparecem, por trás, Naned e Tator, este já
sem cofre, mas com as costas igualmente curvadas. Então
Naned detém-no. |
Naned.- Não!
Disse a senhora que tem que ser por um caminho diferente!
Continuam
a girar, sem cofre e em sentido contrário. |
Duba.- Bom,
precisamos só capas, vento e muito sentimento
Vamos
trasladar a acção para baixo
Já me entendem, pela questão
dos caminhos
Bedla
embrulha-se no xaile e Mânio na capa, que ficaram
deitados pelo chão. Começam a descer, ajudados por
Duba. |
Lembra
Mânio, é ela. É Misss Morlay, e é a última vez que
alguém a viu
Situam-se
na mesma posição que no começo, na parte dianteira do
chapéu, mas de pé. Chegam então Naned e mais Tator,
que vão bater com eles. Duba volve-se para eles, e
vai-se retirando, a empurrá-los corriqueiramente. |
Eh,
vocês! Deixem de fazer tempo!
Bedla.- (A se
afagar no xaile) Bom, Tony, toca a despedida. Não te quis
contar antes, mas há uma semana enviei ao governador a minha renúncia.
No correio de amanhã chegará, com certeza, a ordem com a sua
aceitação. Não. Não digas nada. É melhor assim. A guerra vai
para o Sul e eu vou para o Oeste. Parto logo com um grupo de
nativos.
Mânio.- Não te deixarei partir! Sabes bem que,
no caso de suspensão do capitão, assome o primeiro oficial
essas funções. Ninguém sairá do acampamento esta noite!
Bedla.- Tenente Barret, o senhor conhece o código
militar tão bem como eu. Sabe que até amanhã o capitão sigo a
ser eu. Não cometa um acto de insubordinação que pudesse
custar-lhe a sua carreira!
Mânio.- Se partir é um caso claro de abandono.
Não tenho que esperar a chegada da sua suspensão.
Bedla.- E quem disse que escapo? Ainda estou ao
mando, e acabo de decidir fazer um reconhecimento nocturno. Os
beduínos, como o tenente sabe bem, podem atacar por qualquer sítio
e em qualquer momento.
Mânio
faz um gesto de rendição. Ela abraça-o e logo
afasta-se. |
Oh,
Tony, sabes que é preciso fazê-lo! Eu já fui mulher de um
capitão e não suportaria voltar a ser de um outro, ainda que
esse fosses tu. Vou sair agora mesmo por essa porta e não tentes
impedi-lo, porque sou capaz de comprar uma caravana de berberes e
arrasar-te!
Voltam
a se abraçar e separar. Ela vai-se afastando dele pela
curva de caminho da aba. Logo vira-se para ele com um
sorriso. |
Não
te surpreenda: vou à procura da Tábua. Vou dedicar a vida a
essa procura. E sabes uma coisa: espero demorar muito a encontrar
Mânio.- Amanhã, a minha primeira ordem será
enviar uma patrulha à tua procura.
Bedla.- Estás a ver
? Todos procuramos
sempre qualquer coisa que nos foge
Mânio.- Não
posso ver-te partir, Elisabeth! (A fazer uma continência, em
posição de firmes) Peço licença para me retirar, meu
capitão!
Bedla.- Licença concedida, tenente. (A
imitar sem muito ênfase uma continência no chapéu de flores)
Ah, e boa caça, capitão!
Vão-se
cada um por uma aba diferente do chapéu. Áddis aparece
pela parte superior e lança-se ao vazio e a polinizar,
com lágrimas nos olhos. |
Áddis.- Sempre
temos que deixar o pólen mais amargo para o final!
A
mão do Dr. Alexandrino aproxima de novo o microfone da
boca que não tem. |
Voz do Dr. Alexandrino
Constante.- Mas, nem o tenente Barret a encontrou ao dia
seguinte, nem ninguém voltou nunca a mais a ver. Conta a lenda
que o tenente Barret encontrou, mas a Tábua, a cuja procura
acabara dedicando-se, julgando ser o caminho mais curto para
chegar a Misss Morlay. E ainda conta a lenda que, se esse
fragmento da Tábua não se encontra hoje em dia em nenhum museu,
é porque, muitos anos depois, uma fria manhã de Novembro, se
apresentou na casa da família, em Yorkshire, um oficial de gala,
a pedir licença para visitar o jardim e render-lhe uma
derradeira homenagem à já célebre e desaparecida arqueóloga.
E dizem que foi até ao pé daquele ulmeiro
Aparece
Mânio pela volta de caminho da aba e vai até ao centro
do chapéu. Lá, em baixo da mesma flor em que o fizera
Bedla, faz que introduz um objecto que não se vê. |
e
que ali enterrou o outro fragmento da Tábua Ocre de Núbia,
junto com o pedaço de prato em que ainda se lia a metade do seu
nome, com uma nota manuscrita em que dizia, por se ela voltasse e
o encontrasse: Depois de muito pensar, achei que era com
este fragmento com que melhor encaixava. E que depois,
posto em pé, fez a sua continência, e formulou a frase de
rigor.
Mânio.- Peço licença para me retirar, meu
capitão!
Voz do Dr. Alexandrino Constante.- E que ficou,
assim, sem se mover, durante horas ao não receber resposta, até
que o foram resgatar os caseiros do lugar
Aparecem,
por trás, todos os outros e chegam até Mânio e
sacodem-no, até que recupera o movimento. E então tira
o boné, desfaz o turbante e enxuga as lágrimas com ele.
|
Mânio.- Ah! Misss
Morlay, por que tiveste que desaparecer
Os
outros consolam-no e fazem coro. |
Bedla.- Quem
poderá encher o vácuo do teu chapéu
Tator.- Ah! Quando voltaremos a sentir as cócegas
dos teus cabelos, nos interstícios da palha
Áddis.- Quando poderei polinizar a notícia do
regresso?
Naned.- (Para Duba) Posso desejar que
volte?
Duba
assente e ambos dizem, sem deixar de chorar, a coro: |
Naned e Duba.-
Volta, Misss Morlay, volta!
Mânio, Bedla e Tator.- Todos te necessitamos,
volta!
Áddis.- (A acariciar as flores) Elas
te necessitam, volta!
As
mãos do Dr. Alexandrino começam a fazer girar de novo,
lentamente, o chapéu. Eles não deixam de falar por
isso, um pouco mais animados, empurrados por esse
carrossel. Duba afaga-os enquanto se vai perdendo a sua
voz. |
Duba.- Vamos
rapazes
Amanhã voltaremos a representar a cena do
encontro, e a do jardim também
Vão ver, tenho algumas
ideias
Podíamos aproveitar essa flor nova, para
Voz do Dr. Alexandrino Constante.- E ainda conta
a lenda, finalmente, que uma tropa de génios benéficos, um
pouco beduínos e um pouco shakespearianos, continua a dar vida
ao seu chapéu, repetindo dia a dia a sua história e os seus
sonhos, para que as flores que o habitam não saibam a falta dela
E, se não, como se explica que as flores que podem ver, estejam
hoje ainda vivas, igual de vivas e alegres que o dia em que as próprias
mãos dela as prenderam no chapéu?
Com
o movimento do chapéu, que o arrasta deitado na sua aba,
Ahós acorda, senta e começa a tocar a harpa, a cantar. |
Ahós.- É tão
alegre passeares entre as flores
quando
as esmalta Maio sobre os campos!
Mas
ninguém perguntou o que elas pensam
quando
tu passas e elas vão ficando
mudas
e sós, para sempre, trás de ti.
O
harpista perde-se na volta e apaga-se completamente a
luz. |