A Tábua Ocre de Núbia (ou o Significado da Vida)

Páxina Anterior

Quadro II: Cenas 3ª, 4ª e 5ª.

Páxina Seguinte

v2jguisantabuaocre004.html
Cena 3ª

 

     Mesmo antes de acabar de se fechar e recompor o seu busto, o Dr. Alexis começa já a explicar-se, com a voz e com as mãos.

Dr. Alexis Konstantinos.- Até aqui a reconstrução hipotética de um fragmento do primeiro acto da Tragédia de Dédalo e Pasífae realizada à luz da nossa interpretação dos caracteres gravados na Tábua Ocre de Núbia. Não podemos conjecturar como teria ela seguido, nem como teria ela finalizado, e tudo teria ficado por aí… se não fosse que uma casual, e transcendental, descoberta, viesse dar um rumo inesperado às nossas pesquisas.
     Porque, como muito bem disse o meu ilustre predecessor no uso da palavra, quem pode dizer se essa Tábua está posta do direito ou do revês? E assim, um dia em que, casualmente, a deixamos virada para cima….

     As mãos, como tinham feito antes, retiram-se por um lateral, “trazendo” uma nova lâmina em que se vê a mesma tábua que na primeira, mas numa posição simétrica à daquela ocasião.

     … descobrimos, não sem certo estupor, que, ainda assim, a Tábua podia ser interpretada através da sua comparação com a escrita micénica! A Tábua admitia duas interpretações diferentes, graças a determinadas características dessa escrita que resulta impossível resumir agora, segundo a sua orientação.

     As mãos, que já foram retirando a lâmina anterior no final do parágrafo, regressam agora com uma nova lâmina em que a este pedaço de placa se lhe tem acrescentado a parte que lhe faltava para se converter num respeitável rectângulo cinzento com uma pequena nódoa ocre na sua parte inferior.

     E quando procedemos à sua interpretação e reconstruímos, com idêntico método ao do caso anterior, o fragmento de que fazia parte, a nossa surpresa foi maiúscula ao descobrirmos que tínhamos encontrado o final da Tragédia. A chave do começo e do final de Dédalo e Pasífae ocultas numa só Tábua de argila enterrada na Núbia!

     As mãos retiram a lâmina e permitem-nos ver o rosto do orador.

     Mas, se a reconstrução do primeiro fragmento tinha sido surpreendente por quanto fazia recuar as origens da Tragédia Grega, e de toda a humanidade, uns quantos séculos, este final voltava a surpreender-nos pela ousadia cénica que demonstra. Um final dramático em que Ícaro, o filho de Dédalo, acode a salvar o seu pai graças às famosas asas de cera que lhe permitiam voar, e que se resolve com uma audácia cenográfica impensável nessa época. Assistimos à cena do ponto de vista do filho, numa perspectiva aérea do Labirinto, que faz que vejamos, perfeitamente vertical, a planta do mítico edifício em que já não sabemos se o pai é que erra ou é que rola. Um final espectacular que, curiosamente não coincide, mas contradiz, o da lenda que conhecíamos. Um final dramático, espectacular, e imprevisto…Um final… Ainda que não saibamos se isto pode chamar-se, apropriadamente, “um final”…

     O pano vai correndo, ao mesmo tempo que desce a luz que o ilumina. As mãos voltam aos cantos do proscénio, e ao seu letargo, em atitude de segurar uma folha de papel de madeira. Ouve-se ainda um som gutural na “boca” do orador, que aclara a garganta.






Cena 4ª

 

     A cena que se vai descobrindo e iluminando à medida que o pano se abre, corresponde, ponto por ponto, com a descrição que o Dr. Konstantinos acaba de fazer. Mais próximo do público, Ícaro, virado de costas, faz bater as suas asas de cera semitransparente, como de libélula, mas no mesmo tom cinzento de que aparecem pintados o cabelo, a pele, e a toga curta que escassamente o cobre. Ao fundo (entre as intermitências das asas de Ícaro, que nunca no-lo deixam ver perfeitamente) divisamos o Labirinto “tomado de cima”, como num plano ou desde um helicóptero situado na sua vertical. Desde esse ponto de vista apresenta só partes pintadas de ocre. Graças à sua falta de tecto vemos os meandros das suas galerias, arcadas e corredores, como umas fendas escavadas, por onde circula, dando tombos, precipitando-se nas curvas, e rolando nos trechos mais rectos, como uma bola que num “flipper” vai caindo pelo seu circuito, o seu muito amado pai, Dédalo, que apresenta uma coloração perfeitamente cinzenta.
     Ícaro não deixa de ondular o corpo como se estivesse a sobrevoar o fundo do cenário e faz buzina com as mãos para conseguir ser ouvido apesar da distância e do efeito sonoro que acompanha o seu constante rebolar.

Ícaro.- Ouve a minha voz, tu que perdido erras pelo eterno labirinto a que as fúrias e os fados, fatalmente entrançados por funesto feitiço de Rainha Cruel, para sempre te condenaram a percorrer. Venho para te salvar, movido tanto por filiais afectos como por cerúleas asas que eu próprio fabriquei.

     Dédalo interrompe a sua marcha (melhor seria dizer a sua queda) e voltando-se para todas partes, com uma mão apoiada na parede e outra no peito, interroga a todas as esquinas e aranhas do labirinto.

Dédalo.- Quem vai, quem chama, que triste mortal ou sombra me fala neste desterro? Diz-me: qual foi teu pecado para comigo jazeres nesta prisão sem porta e sem final?
Ícaro.- Nem sombra sou, nem contigo ando encerrado. Cá, acima de ti, estou. Podes-me ver tão só alçando um pouco a cabeça.

     Dédalo alça a vista, com uma mão nos olhos para amparar-se do sol, e descobre Ícaro incrédulo.

Dédalo.- Ó divindade, quem quer que sejas, Hermes pelas tuas asas, Apolo pela tua beleza, Zeus pelo teu poder, apieda-te deste pobre mortal.
Ícaro.- É tanto o sol que te cega, ou tanto o teu infortúnio, que já não reconheces a voz e a figura de Ícaro, teu filho?

     Dédalo muda radicalmente de tom.

Dédalo.- Tinha eu um filho? Chamava-se Ícaro? E tu, és esse?
Ícaro.- Tinhas, chamo-me e sou.
Dédalo.- Pois se o Minotauro é fruto dos amores de um touro com a mulher do Rei, com quem, ou que, andaria eu em relações para ter um filho com asas? Vá, retira-te, se és do meu sangue, antes que te vejam os vizinhos…
Ícaro.- As asas de cera são, e feitas foram por mim, pois me Natura negou meios para te socorrer…
Dédalo.- Acho que já te vou reconhecendo como filho, pois vontade estou sentindo de te esganar, de te bater, de te espancar e te esfolar…Besta, burro, animal! De quadrúpede deverias andar tu disfarçado, e não de borboleta! Não estás a ver que fizeste as asas grandes de mais? O seu comprimento supera o largo dos corredores. Assim nunca poderás descer para resgatar-me. Quantas vezes não te terei dito: “Ícaro, meu filho, olho ao cálculo, constância nas matemáticas, tudo é questão de medida!”
Ícaro.- E por que não tens tu calculado a largura suficiente para um homem poder passar com as asas bem abertas?
Dédalo.- Não, se a culpa é minha… O próximo labirinto que construa não me esquece a pista de aterragem, a torre de controlo, os Hare-Krishna e a cafetaria.
Ícaro.- Bom pai, devo deixar-te, que estas asas funcionam à corda, e está a pique de acabar. Se em algo puder ajudar… Manda recado para a mãe?
Dédalo.- Que estúpido sou, que besta, que digno de ser teu pai! Claro que ajudar-me podes. É coisa simples e fácil, que até tu podes fazer. Só tens que me indicar, de cima, para onde cai a saída.
Ícaro.- Que grande ideia tiveste. És digno de ser meu pai. O problema é que, de aqui, nenhuma saída lhe vejo.
Dédalo.- Diz-me, ao menos, qual é a sua forma. Em geral, que traça tem?
Ícaro.- É complexo…
Dédalo.- E tu simples… Diz-mo doutra maneira, escolhe bem as palavras… As palavras? Uma leve lembrança ilumina o meu turvo cérebro… Um rumor que recorda, algo assim, como que eu tinha feito este labirinto, não só com pedras, mas com palavras… e se soubesse as palavras, achado teria ao fim a minha salvação…
Ícaro.- Pois, por que não disseste antes….?
Dédalo.- Por que? Que podes saber tu das palavras de que o labirinto é feito?
Ícaro.- Saída alguma não vejo, mas as palavras sim…
Dédalo.- Que as vês? Como podes vê-las? Onde estão, dá cá o papel!
Ícaro.- Aí, em baixo, estou vendo-as mesmo desde que cheguei!
Dédalo.- Di-las logo, meu filhinho, sê-me fiel, salva teu pai! A saída estava nelas. Ou isso creio lembrar. Ah, Pasífae feiticeira, se os teus conjuros julgaste capazes de me encerrar nas minhas próprias palavras, para sempre… Agora que as sei, para sempre, com elas hei-de rompê-los. É só dizer, e sou livre (ou, ao menos, isso espero). Rir-me-ei eu dela afinal!
Ícaro.- Estás certo de que é isso?
Dédalo.- Assim é, não tenhas medo. Filho de Deus, crê no teu pai! Diz-me logo essas palavras, que, quando eu, logo, as repita, volto a ser um homem livre …
Ícaro.- Estás são. Presta atenção, devo ir-me…

     O seu adejar, com efeito, é cada vez mais lento. Antes de ler as palavras, como a fazer atenção, fecha as asas nas costas. E é quando nos permite ver que o contorno do Labirinto, a grosso modo, reproduz o da Tábua de argila, e que as suas galerias e corredores descrevem, de modo bastante aproximado, a forma dos seus signos.

     Di-las-ei só uma vez… Repete-as de imediato, para que não as esqueças… Já lá vão:

     Dédalo espera impaciente, com os braços estendidos, como se esperasse chuva, e não palavras. Ícaro vira-se para o público, com os braços cruzados sobre o peito, em atitude hierática e misteriosa, permitindo observar que toda a parte anterior do seu corpo estava pintada de ocre. A sua voz sai terrível desde uma face de efígie.

     “Ai de mim, ai de mim! Por três, por quatro vezes, por sempre, ai de mim!”

     Escuro rápido. As mãos, nos laterais, limitam-se a esboçar um gesto que diz “atenção” e a voz do orador emite um leve “hemm”.






Cena 5ª


     Interior do Labirinto. Num pano que enche o fundo do cenário aparecem desenhados, em complexa estrutura, profundos corredores que não conduzem a parte alguma e grandes arcadas que não suportam tecto nenhum, pois longas e estreitas faixas abrem-se, lá no alto, para um céu grandiloquente e opulento, sulcado de nuvens que parecem posarem para Rembrandt.
     No centro aparece Dédalo, de pé, com os braços estendidos e uma máscara ocre sobre o rosto. Por trás dele, ao fundo, um coro ocre e cinzento, com fronteiras não muito rectilíneas.

Dédalo.- Ai de mim, Ai de mim, por três, por quatro vezes, por sempre, ai de mim!
Coro Ocre.- Ai de ti, ai de ti, por sete e oito vezes, por sempre, ai de ti!

     Dédalo observa o coro como se não desse crédito aos seus próprios olhos, como quem crê despertar e sonha que acorda. Ouve-se o riso de Pasífae, lá em cima, ecoando em todas as paredes do labirinto.

Dédalo.- Ai de mim! (Vira a máscara, que mostra agora o seu lado cinzento) Esse riso! Ela foi, agora o entendo! Acaba de fazê-lo! Outra volta cruel, neste jogo sem fim. (Volta a máscara para o seu lado ocre) Por vinte, por mil vezes, por sempre ai de mim!
Coro Cinzento.- Tua foi a obra, tua foi a culpa. Sempre haverá mais uma vez.
Coro Ocre.- Por vinte, vinte e uma, por mil, por mil e uma, por sempre e sempre e uma, por sempre ai de ti!

     E, enquanto herói e coro voltam a repetir a Tragédia desde o início, volta a se ouvir a voz do orador, ainda que não reapareça o retrato. As mãos, ressuscitadas, elaboram no ar as conclusões finais.

Voz do Dr. Alexis Konstantinos.- …Estão a ver como isto não podia chamar-se, apropriadamente, um final? Ainda que (enfim, compreendem?) o final, o começo, alfa e ómega… Não podia haver um tema que calhasse melhor num alfabeto grego… E como ia ter final, aliás, uma história que constitui a nossa eterna tragédia?

     Escuro e silêncio total.

Páxina Anterior

Ir ao índice de Páxinas

Páxina Seguinte


logoDeputación logoBVG © 2006 Biblioteca Virtual Galega