v2jguisantabuaocre004.html
Mesmo
antes de acabar de se fechar e recompor o seu busto, o
Dr. Alexis começa já a explicar-se, com a voz e com as
mãos. |
Dr. Alexis Konstantinos.-
Até aqui a reconstrução hipotética de um fragmento do
primeiro acto da Tragédia de Dédalo e Pasífae realizada à luz
da nossa interpretação dos caracteres gravados na Tábua Ocre
de Núbia. Não podemos conjecturar como teria ela seguido, nem
como teria ela finalizado, e tudo teria ficado por aí
se
não fosse que uma casual, e transcendental, descoberta, viesse
dar um rumo inesperado às nossas pesquisas.
Porque, como muito bem
disse o meu ilustre predecessor no uso da palavra, quem pode
dizer se essa Tábua está posta do direito ou do revês? E
assim, um dia em que, casualmente, a deixamos virada para
cima
.
As
mãos, como tinham feito antes, retiram-se por um
lateral, trazendo uma nova lâmina em que se
vê a mesma tábua que na primeira, mas numa posição
simétrica à daquela ocasião. |
descobrimos, não sem certo estupor, que, ainda assim, a Tábua
podia ser interpretada através da sua comparação com a escrita
micénica! A Tábua admitia duas interpretações diferentes,
graças a determinadas características dessa escrita que resulta
impossível resumir agora, segundo a sua orientação.
As
mãos, que já foram retirando a lâmina anterior no
final do parágrafo, regressam agora com uma nova lâmina
em que a este pedaço de placa se lhe tem acrescentado a
parte que lhe faltava para se converter num respeitável
rectângulo cinzento com uma pequena nódoa ocre na sua
parte inferior. |
E
quando procedemos à sua interpretação e reconstruímos, com
idêntico método ao do caso anterior, o fragmento de que fazia
parte, a nossa surpresa foi maiúscula ao descobrirmos que
tínhamos encontrado o final da Tragédia. A chave do começo e
do final de Dédalo e Pasífae ocultas numa só Tábua de argila
enterrada na Núbia!
As
mãos retiram a lâmina e permitem-nos ver o rosto do
orador. |
Mas,
se a reconstrução do primeiro fragmento tinha sido
surpreendente por quanto fazia recuar as origens da Tragédia
Grega, e de toda a humanidade, uns quantos séculos, este final
voltava a surpreender-nos pela ousadia cénica que demonstra. Um
final dramático em que Ícaro, o filho de Dédalo, acode a
salvar o seu pai graças às famosas asas de cera que lhe
permitiam voar, e que se resolve com uma audácia cenográfica
impensável nessa época. Assistimos à cena do ponto de vista do
filho, numa perspectiva aérea do Labirinto, que faz que vejamos,
perfeitamente vertical, a planta do mítico edifício em que já
não sabemos se o pai é que erra ou é que rola. Um final
espectacular que, curiosamente não coincide, mas contradiz, o da
lenda que conhecíamos. Um final dramático, espectacular, e
imprevisto
Um final
Ainda que não saibamos se isto
pode chamar-se, apropriadamente, um final
O
pano vai correndo, ao mesmo tempo que desce a luz que o
ilumina. As mãos voltam aos cantos do proscénio, e ao
seu letargo, em atitude de segurar uma folha de papel de
madeira. Ouve-se ainda um som gutural na boca
do orador, que aclara a garganta. |
A
cena que se vai descobrindo e iluminando à medida que o
pano se abre, corresponde, ponto por ponto, com a
descrição que o Dr. Konstantinos acaba de fazer. Mais
próximo do público, Ícaro, virado de costas, faz bater
as suas asas de cera semitransparente, como de libélula,
mas no mesmo tom cinzento de que aparecem pintados o
cabelo, a pele, e a toga curta que escassamente o cobre.
Ao fundo (entre as intermitências das asas de Ícaro,
que nunca no-lo deixam ver perfeitamente) divisamos o
Labirinto tomado de cima, como num plano ou
desde um helicóptero situado na sua vertical. Desde esse
ponto de vista apresenta só partes pintadas de ocre.
Graças à sua falta de tecto vemos os meandros das suas
galerias, arcadas e corredores, como umas fendas
escavadas, por onde circula, dando tombos,
precipitando-se nas curvas, e rolando nos trechos mais
rectos, como uma bola que num flipper vai
caindo pelo seu circuito, o seu muito amado pai, Dédalo,
que apresenta uma coloração perfeitamente cinzenta.
Ícaro não deixa de
ondular o corpo como se estivesse a sobrevoar o fundo do
cenário e faz buzina com as mãos para conseguir ser
ouvido apesar da distância e do efeito sonoro que
acompanha o seu constante rebolar. |
Ícaro.- Ouve a
minha voz, tu que perdido erras pelo eterno labirinto a que as
fúrias e os fados, fatalmente entrançados por funesto feitiço
de Rainha Cruel, para sempre te condenaram a percorrer. Venho
para te salvar, movido tanto por filiais afectos como por
cerúleas asas que eu próprio fabriquei.
Dédalo
interrompe a sua marcha (melhor seria dizer a sua queda)
e voltando-se para todas partes, com uma mão apoiada na
parede e outra no peito, interroga a todas as esquinas e
aranhas do labirinto. |
Dédalo.- Quem
vai, quem chama, que triste mortal ou sombra me fala neste
desterro? Diz-me: qual foi teu pecado para comigo jazeres nesta
prisão sem porta e sem final?
Ícaro.- Nem sombra sou, nem contigo ando
encerrado. Cá, acima de ti, estou. Podes-me ver tão só
alçando um pouco a cabeça.
Dédalo
alça a vista, com uma mão nos olhos para amparar-se do
sol, e descobre Ícaro incrédulo. |
Dédalo.- Ó
divindade, quem quer que sejas, Hermes pelas tuas asas, Apolo
pela tua beleza, Zeus pelo teu poder, apieda-te deste pobre
mortal.
Ícaro.- É tanto o sol que te cega, ou tanto o
teu infortúnio, que já não reconheces a voz e a figura de
Ícaro, teu filho?
Dédalo
muda radicalmente de tom. |
Dédalo.- Tinha
eu um filho? Chamava-se Ícaro? E tu, és esse?
Ícaro.- Tinhas, chamo-me e sou.
Dédalo.- Pois se o Minotauro é fruto dos
amores de um touro com a mulher do Rei, com quem, ou que, andaria
eu em relações para ter um filho com asas? Vá, retira-te, se
és do meu sangue, antes que te vejam os vizinhos
Ícaro.- As asas de cera são, e feitas foram
por mim, pois me Natura negou meios para te socorrer
Dédalo.- Acho que já te vou reconhecendo como
filho, pois vontade estou sentindo de te esganar, de te bater, de
te espancar e te esfolar
Besta, burro, animal! De
quadrúpede deverias andar tu disfarçado, e não de borboleta!
Não estás a ver que fizeste as asas grandes de mais? O seu
comprimento supera o largo dos corredores. Assim nunca poderás
descer para resgatar-me. Quantas vezes não te terei dito:
Ícaro, meu filho, olho ao cálculo, constância nas
matemáticas, tudo é questão de medida!
Ícaro.- E por que não tens tu calculado a
largura suficiente para um homem poder passar com as asas bem
abertas?
Dédalo.- Não, se a culpa é minha
O
próximo labirinto que construa não me esquece a pista de
aterragem, a torre de controlo, os Hare-Krishna e a cafetaria.
Ícaro.- Bom pai, devo deixar-te, que estas asas
funcionam à corda, e está a pique de acabar. Se em algo puder
ajudar
Manda recado para a mãe?
Dédalo.- Que estúpido sou, que besta, que
digno de ser teu pai! Claro que ajudar-me podes. É coisa simples
e fácil, que até tu podes fazer. Só tens que me indicar, de
cima, para onde cai a saída.
Ícaro.- Que grande ideia tiveste. És digno de
ser meu pai. O problema é que, de aqui, nenhuma saída lhe vejo.
Dédalo.- Diz-me, ao menos, qual é a sua forma.
Em geral, que traça tem?
Ícaro.- É complexo
Dédalo.- E tu simples
Diz-mo doutra
maneira, escolhe bem as palavras
As palavras? Uma leve
lembrança ilumina o meu turvo cérebro
Um rumor que
recorda, algo assim, como que eu tinha feito este labirinto, não
só com pedras, mas com palavras
e se soubesse as palavras,
achado teria ao fim a minha salvação
Ícaro.- Pois, por que não disseste
antes
.?
Dédalo.- Por que? Que podes saber tu das
palavras de que o labirinto é feito?
Ícaro.- Saída alguma não vejo, mas as
palavras sim
Dédalo.- Que as vês? Como podes vê-las? Onde
estão, dá cá o papel!
Ícaro.- Aí, em baixo, estou vendo-as mesmo
desde que cheguei!
Dédalo.- Di-las logo, meu filhinho, sê-me
fiel, salva teu pai! A saída estava nelas. Ou isso creio
lembrar. Ah, Pasífae feiticeira, se os teus conjuros julgaste
capazes de me encerrar nas minhas próprias palavras, para
sempre
Agora que as sei, para sempre, com elas hei-de
rompê-los. É só dizer, e sou livre (ou, ao menos, isso
espero). Rir-me-ei eu dela afinal!
Ícaro.- Estás certo de que é isso?
Dédalo.- Assim é, não tenhas medo. Filho de
Deus, crê no teu pai! Diz-me logo essas palavras, que, quando
eu, logo, as repita, volto a ser um homem livre
Ícaro.- Estás são. Presta atenção, devo
ir-me
O
seu adejar, com efeito, é cada vez mais lento. Antes de
ler as palavras, como a fazer atenção, fecha as asas
nas costas. E é quando nos permite ver que o contorno do
Labirinto, a grosso modo, reproduz o da Tábua de argila,
e que as suas galerias e corredores descrevem, de modo
bastante aproximado, a forma dos seus signos. |
Di-las-ei
só uma vez
Repete-as de imediato, para que não as
esqueças
Já lá vão:
Dédalo
espera impaciente, com os braços estendidos, como se
esperasse chuva, e não palavras. Ícaro vira-se para o
público, com os braços cruzados sobre o peito, em
atitude hierática e misteriosa, permitindo observar que
toda a parte anterior do seu corpo estava pintada de
ocre. A sua voz sai terrível desde uma face de efígie. |
Ai
de mim, ai de mim! Por três, por quatro vezes, por sempre, ai de
mim!
Escuro
rápido. As mãos, nos laterais, limitam-se a esboçar um
gesto que diz atenção e a voz do orador
emite um leve hemm. |
Interior
do Labirinto. Num pano que enche o fundo do cenário
aparecem desenhados, em complexa estrutura, profundos
corredores que não conduzem a parte alguma e grandes
arcadas que não suportam tecto nenhum, pois longas e
estreitas faixas abrem-se, lá no alto, para um céu
grandiloquente e opulento, sulcado de nuvens que parecem
posarem para Rembrandt.
No centro aparece
Dédalo, de pé, com os braços estendidos e uma máscara
ocre sobre o rosto. Por trás dele, ao fundo, um coro
ocre e cinzento, com fronteiras não muito rectilíneas. |
Dédalo.- Ai de
mim, Ai de mim, por três, por quatro vezes, por sempre, ai de
mim!
Coro Ocre.- Ai de ti, ai de ti, por sete e oito
vezes, por sempre, ai de ti!
Dédalo
observa o coro como se não desse crédito aos seus
próprios olhos, como quem crê despertar e sonha que
acorda. Ouve-se o riso de Pasífae, lá em cima, ecoando
em todas as paredes do labirinto. |
Dédalo.- Ai de
mim! (Vira a máscara, que mostra agora o seu lado cinzento)
Esse riso! Ela foi, agora o entendo! Acaba de fazê-lo! Outra
volta cruel, neste jogo sem fim. (Volta a máscara para o seu
lado ocre) Por vinte, por mil vezes, por sempre ai de mim!
Coro Cinzento.- Tua foi a obra, tua foi a culpa.
Sempre haverá mais uma vez.
Coro Ocre.- Por vinte, vinte e uma, por mil, por
mil e uma, por sempre e sempre e uma, por sempre ai de ti!
E,
enquanto herói e coro voltam a repetir a Tragédia desde
o início, volta a se ouvir a voz do orador, ainda que
não reapareça o retrato. As mãos, ressuscitadas,
elaboram no ar as conclusões finais. |
Voz do Dr. Alexis
Konstantinos.-
Estão a ver como isto não podia
chamar-se, apropriadamente, um final? Ainda que (enfim,
compreendem?) o final, o começo, alfa e ómega
Não podia
haver um tema que calhasse melhor num alfabeto grego
E como
ia ter final, aliás, uma história que constitui a nossa eterna
tragédia?