A Tábua Ocre de Núbia (ou o Significado da Vida)

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Quadro III: Cenas 1ª e 2ª.

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Quadro III
Do Material e do Imaterial

Cena 1ª

 

     Ouve-se, no escuro, a voz do Secretário/Coordenador.

Voz do Secretário/Coordenador.- Tem o uso da palavra o professor Alexander Konstanz, professor convidado no Departamento de Escandinaviologia Submarina da Universidade de Lund, na Suécia.

     Ao se acenderem as luzes aparece um novo rosto desenhado no pano que enche a parte dianteira do cenário, com as suas correspondentes mãos nos laterais, prestes a obedecer aos mandados da voz e dos manipuladores que as manejam. Este orador apresenta um carácter marcadamente nórdico: cabelo em franja, bigode loiro, gravata amarela.
     Um certo tom etílico na voz sobrepõe-se ao sotaque, de maneira que nunca sabemos, quando escorrega num termo, se é devido à sua língua nativa ou à sua língua pegajosa.

Prof. Alexander Konstanz.- Muito obrigado, antes de mais, por essas elogiosas palavras. Devo começar declarando que não me sinto, de modo algum, incomodado pela anterior alusão aos Reis Vikings e as suas cornaduras. Vou-lhes confessar que, ao contrário, achei imensa piada. (Emite um assopro que deve ser interpretado como a inicial de um riso mais longo) O qual não me pode impedir de dissentir, de raiz, de tudo quanto se tem exposto aqui recentemente. Fantasias próprias dos espíritos meridionais, que não resistem a uma análise séria e rigorosa.
A nossa interpretação das inscrições aparecidas na Tábua Ocre de Núbia, baseia-se, em contrapartida, na sua evidente semelhança com as inscrições rúnicas recentemente encontradas entre os restos de um navio Viking (irónico) (já os senhores conhecem, aqueles parentes do Minotauro…) no mar do Norte. E esta semelhança obriga-nos a fazer recuar a época de aparecimento das primeiras “runas”, esses petroglifos (demonstra certa dificuldade na pronúncia) até agora considerados privativos das línguas germânicas, e a concluir que elas constituíram, sem dúvida, o primeiro registo escrito da história da humanidade, de que teriam derivado os restantes alfabetos, como, aliás, a própria lenda aparecida no cofre que a continha, parece sugerir.
Pouco nos importa agora como uma tábua gravada na Escandinávia pode ter chegado até ao deserto da Núbia no século 13 antes de Cristo, embora incursões vikings no Mediterrâneo oriental estejam suficientemente documentadas ao longo da história. O nosso ponto de interesse centra-se na datação de dita Tábua. Porque do cotejo dos caracteres presentes na Tábua Ocre de Núbia e as primitivas inscrições rúnicas podemos deduzir, com toda a probabilidade, a existência de uma escrita comum, anterior, inspirada nas fases da Lua… Como se pode apreciar facilmente na demonstração multimédia a que vamos proceder, a seguir…

     Uma mão situa-se perfeitamente perpendicular ao chão tentando atingir, com a ponta dos dedos, o alto do cenário. Não o consegue e então têm que acudir na sua ajuda outros operários, que trazem uma escada pela qual ascendem dois deles, aos quais, aqueles que ficam no chão, trespassam a mão, que, assim içada, consegue fazer descer (ou desenrolar-se) um ecrã branco que cobre o rosto do Prof. Alexander Konstanz, os operários e a escada. Ficam à vista do público as mãos apenas, uma das quais sai da cena e regressa empunhando um enorme ponteiro que, como sempre, há-de ser manejado afinal pelos manipuladores.
     No centro do ecrã aparece a imagem da Tábua, tal como a conhecemos, pintada, neste caso, com uma tinta especialmente densa que não permita o passo da luz, enquanto as formas dos signos escavados são translúcidas. Alguma luz externa deve sugerir a ideia de que essa imagem está a ser projectada de fora (Uma maneira mais artesanal, e mais teatral, de “representar” a projecção podia consistir numa réplica em lata de uma enorme objectiva de projector, situada no fundo da plateia, de que uns outros manipuladores extrairiam um pedaço de tecido que iriam estendendo à medida que se aproximavam, a bom correr, do “ecrã” em que o sujeitavam por meio de paus com ganchos ou tenazes, momento em que vemos que está cortado com a forma da Tábua e com as dos signos como entalhes no interior).
     Seja como for, a “projecção” deve ir acompanhada de um fundo musical “new age” e mesmo, se possível, de alguns raios laser, tão caros como gratuitos. Aproveitando a escada que ficou dentro, um dos operários que estão nela irá deslocando, numa trajectória curva, uma fonte de luz circular (pode ser mesmo uma circunferência de material reflector, que aproveite a luz de fora, ou uma lâmpada ligeira, tipo farol chinês) que vai iluminando, por trás, as formas dos caracteres à medida que fala o orador. Esta Lua cheia começa o seu percurso desde fora da Tábua e vai-se ocultando detrás da sua aresta antes de reaparecer recortada com a forma do primeiro signo. O ponteiro que “maneja” o professor vai-nos indicando o seu caminho.

     …Pode-se comprovar que, lendo-os da esquerda para a direita (tese geralmente aceite entre os especialistas que se têm pronunciado acerca do sentido da escrita rúnica), os caracteres representados na Tábua Ocre de Núbia vão reproduzindo, com total exactidão, a sucessão habitual das fases lunares… Embora, a natural evolução da primitiva escrita possa ter deformado, ou transformado, alguns desses caracteres.

     Com efeito, as formas do signos, e a sua distribuição, reproduzem, às vezes de forma impecável, outras mais grosseira, as fases da luz, de minguante a nova e de crescente a cheia.
     A Lua acaba o seu percurso. Cessa repentinamente a música. Uma mão do professor puxa do extremo do ecrã, que, como impelido por uma mola, se retrai até desaparecer no alto, deixando à vista (apanhado, se não se pode dizer “com a boca na botija”, sim com as mãos na Lua cheia) um dos manipuladores no alto da escada, que desce e retira-se, com os seus companheiros, a escada, e a sua dose de vergonha, por um lateral correndo.
     A outra mão do professor deixa o seu descomunal ponteiro, e ambas vão-se reunir, em atitude conclusiva, ao centro do proscénio.

     Considerada deste modo, a Tábua Ocre de Núbia reduzir-se-ia a um calendário lunar transcrito em primitivos caracteres rúnicos. Mas há mais. Outros signos nela representados podem ser interpretados como eclipses de Sol, chuvas de meteoritos, constelações, equinócios, etc. Uma série de efemérides meteorológicas e astronómicas (Tem uma certa dificuldade na pronúncia dos termos) que nos permitem uma datação tão exacta como precisa: o ano 1.753 antes de Cristo, único ano da história, segundo todos os registos geológicos e paleontológicos (Idem.) em que se deu a sua confluência.
     Como, aliás, (fala como decorando e atrapalhando-se cada vez mais) todas as provas realizadas com isótopos confirmam a nossa tese, e como, analisando o material de que é feita a Tábua, têm-se localizado traças de óxidos de ferro e alumínio, de que o solo da Núbia é muito pobre, e que resultam, porém, abundantes na Islândia, sobre tudo nas camadas de terreno de origem vulcânica… Tudo isto leva-nos à conclusão de que o único significado ou utilidade dessa Tábua foi a própria datação do material que lhe serve de suporte. A fim de determinar o dia, mês lunar e ano, de uma erupção vulcânica (que, com efeito, se produziu no Hekla, mais ou menos nessa altura) os primitivos navegantes nórdicos não encontraram melhor forma que gravar, numa amostra dos barros procedentes dessa erupção, as efemérides astronómicas que se produziram imediatamente a ela. Isso é tudo, a história é que não há história. A Tábua nada representa, fora ela própria. Toda a história que contém é a do material em que está escrita. A sua própria história é a sua própria história… isto penso que já o disse… (Parece como que a língua lhe ficasse colada ao véu do paladar) …Desculpem…

     Uma mão sai, pela direita, e regressa com um copo de plástico de um tamanho adequado. Vemos que está cheio de um líquido transparente. Deixa-o no centro do cenário. Há um momento de dúvida e a mão esquerda, finalmente, empurra-o delicadamente até o fazer desaparecer por onde entrou. Depois é ela que desaparece pela esquerda e volta com um copo idêntico, se não fosse estar cheio de um líquido de tom amarelo. A mão direita “agarra-o” e leva-o à boca desenhada no pano, sempre com a ajuda de outros operários armados de cordas e polés. Volta a depositar o copo no chão. As mãos e os operários (com as suas cordas) retiram-se, deixando-o no meio do cenário, ainda bastante cheio.

     Ahhh… isso está melhor… Dizia?… Bom… a mim tudo isto o que me lembra realmente é uma velha história. Chama-se “A Burla da Morte”, ou “Os Quatro Nomes da Morte”. Ouvia-a contar na minha terra natal, Svenljunga, uma pequena vila fronteira entre o Älvsborgs Län e o Hallands Län, ao meu tio Hjalmar, nas noites de Inverno. E temos longas noites de Inverno, lá acima…

     De repente pronuncia todos esses nomes geográficos e antroponímicos com uma fluidez invejável, como se soubesse que ali as autoridades são muito extremas com os limites de alcoolemia.
     Vai-se correndo o pano e as mãos retirando-se para o seu letargo lateral. Mas o copo de plástico fica no meio.






Cena 2ª

 

     Ao abrir-se, o pano deixa ver o interior da Cantina de Jurgen o velho. Uma mesa de madeira, com bancos corridos, em que bebem em taças toscas e profundas, Lötar, o carpinteiro, Björn o pedreiro, e o oleiro Sten. Ao fundo uma parede de pedra, pobre e mal caiada, com uma janela, ao pé da mesa, que abre para uma noite de Lua cheia. Ao outro lado, a porta da rua. Um pouco mais para diante, sentado num talho, só, aparece Ladulas, o cego, com a sua capa negra e o seu olhar vazio fixo num ponto, sempre a torcer entre dedos vacilantes a sua bengala. Um candeeiro sujo, no alto, é a única luz da peça.
     No momento de se abrir o pano, Jurgen, com uma toalha branca mal atada na cinta, a modo de avental, caminha em direcção ao público. Numa mão leva uma bilha de barro e na outra um caço de madeira. Ultrapassa a linha ilusória que traçou o pano na sua ida, ao mesmo tempo que os da mesa do fundo assobiam, riem e fazem ruído com as taças, mostrando o seu interior vazio. Introduzindo o caço dentro do enorme copo de plástico do sedento do orador, procede a reencher a bilha, dirigindo-se logo para os ruidosos fregueses.

Voz do Prof. Alexander Konstanz.- Todos os anos, por São Nicolau, a Cantina de Jurgen o Velho enchia-se de uma alegre rapaziada que acudia para experimentar a sidra nova, recém tirada do barril… E entre todos destacava um grupo de pândegos que costumava ficar ali até altas horas da noite… Eram eles, Lötar, o carpinteiro…

     Jurgen serve sidra na taça de Lotar.

     …Björn, o pedreiro…

     Jurgen repete a operação com ele.

     …e o oleiro Sten…

     Jurgen vai-se retirar.

Lötar, o Carpinteiro.- (A rir) Eh… Jurgen, vem sentar-te cá um bocadinho com a gente…
Björn, o Pedreiro.- (Igual) …e toma uma taça connosco… Será a única maneira de convidares um freguês…
Lötar, o Carpinteiro.- Não pode, não pode… que tem que ir pagar o dízimo…

     Jurgen vai para Ladulas, que espera com um braço estendido no ar, tentando manter a sua taça fixa com uma mão tremente. Quando o líquido a enche, pára-se a ouvir o som, e quando acaba, recolhe a taça e bebe a golos curtos.

Björn, o Pedreiro.- Tem-lhe um respeito, que é quase medo…
Sten, o Oleiro.- De certas coisas é melhor não rir, nem falar…
Lötar, o Carpinteiro.- Outro igual que ele…(Bebe um golo e cospe-o)…Puagh, está forte a sidra esta…sabe a… a… como a aguardente de cevada!

     Jurgen desaparece um momento pelo lateral. Björn fala baixo para que não ouça Ladulas.

Björn, o Pedreiro.- (a Sten, enfiando com o anterior) Serve-lhe sempre de graça, e com uma cerimónia que nem ao Rei da Dinamarca…e deixa-o dormir aqui, de noite, quando fecha.
Lötar, o Carpinteiro.- (A Björn) Mas tu não sabes por que é que é…

     Jurgen regressa com mais uma taça. Vai de novo até ao copo de plástico a encher a bilha e volta para a mesa.

Sten, o Oleiro.- Ó Jurgen, desculpe-os, acho que já beberam de mais.
Jurgen o Velho.- Vamos, rapazes! Lá vai mais uma por conta da casa. Mas não incomodem o cego. A última, e logo…rua!

     Pousa a sua taça na mesa. Senta-se com eles e serve a todos.

Lötar, o Carpinteiro.- Se não incomodamos… (Alçando a voz, a Ladulas)…Não é, Ladulas? Tu não te incomodas se eu te perguntar, por exemplo, que Lua temos hoje, não é verdade?

     Dá uma cotovelada a Björn, que ri, e a Sten, que olha escandalizado. Só Jurgen parece não dar muita importância e continua a beber a sua taça. A voz de Ladulas é como a sua mão, trémula mas segura.

Ladulas, o Cego.- Hoje temos Lua cheia. Tão cheia que arrebenta.

     Há um suspiro de admiração em Björn e Sten. Lötar vira-se para eles.

Lötar, o Carpinteiro.- Que vos dizia… Este Ladulas é muito especial, ele diz que não é cego… É que foca muito mais longe do que nós, por isso o objecto mais próximo que pode ver é a Lua…
Björn, o Pedreiro.- E o mais afastado?
Sten, o Oleiro.- Rapazes…

     Jurgen fica cabisbaixo, com os olhos abismados na taça. Tem como um olhar de súplica para Lötar. Mas este nem repara.

Lötar, o Carpinteiro.- (Alça a voz) Ó Ladulas, cá os amigos perguntam-se se tu nos podes dizer por onde anda hoje a morte!
Ladulas, o Cego.- (Sem dar importância) A morte está agora mesmo chegando à sua casa, perto de Uppsala. Chama-se Greda e vi-a vir esta tarde pela porta da vila com um cesto de flores. Ao passar a ponte deixou cair uma no rio. Amanhã o moleiro que trabalha águas abaixo aparecerá caído sobre um monte de trigo sem moer.
Lötar, o Carpinteiro.- (A rir) Coitadinho, só ele é que ficou desfeito!
Björn, o Pedreiro.- (Igual) Já o dizia minha avô: tudo acaba por ser farinha de algo!
Sten, o Oleiro.- Por Deus, rapazes, por deus…
Jurgen o Velho.- (Erguendo-se) O dito. Já chega. Vamo-nos embora….

     A iluminação geral apaga-se, mas ninguém mexe. Fica só a luz da Lua na Janela, que muda subitamente de fase e aparece no seu quarto minguante.

Voz do Prof. Alexander Konstanz.- Poucos dias depois, os três amigos voltavam a reunir-se ali.

     Ilumina-se de novo a cena. Jurgen está a encher a bilha no copo de diante. Os da mesa bebem e riem. Ladulas, como sempre, calado e com o olhar fixo.

Björn, o Pedreiro.- Vamos lá, Ladulas, não nos tenhas mais tempo em suspenso. Faz favor, declara onde é que ela está agora mesmo…
Lötar, o Carpinteiro.- Isso, isso… diz-nos de vez, em que lugar espreita hoje a negra dama…
Sten, o Oleiro.- Deixa-o que fale…

     Jurgen chega e serve cabisbaixo uma taça a todos.

Ladulas, o Cego.- A morte anda hoje a vadiar por Borás…
Lötar, o Carpinteiro.- Uhhh… está a achegar-se a nós… Posso já sentir seu turvo alento!
Sten, o Oleiro.- Deixa-o seguir…

     Jurgen serve a taça de Ladulas e logo vai-se sentar com os rapazes. Ladulas bebe um golo breve e prossegue.

Ladulas, o Cego.- Faz-se chamar agora Hans, e é um bufarinheiro que passa todos os anos por ali, com o seu casaco debruado de guizos nas bainhas. Leva às costas uma enorme trouxa verde, e gira sobre tudo paus de fiar e colheres de estanho. Entrou um momento, de manhã, na capela de Fristad. A mulher do reverendo morrerá esta noite de parto.
Björn, o Pedreiro.- Tivemos sorte. Se errasse um pouco o tiro, chumbava-nos…
Lötar, o Carpinteiro.- Quem nasceu esta noite, fomos nós…
Sten, o Oleiro.- (Sorrindo. Timidamente irónico) Vá rapazes, vamos beber mais uma pela sua alma e… para a cama, que Jurgen há-de querer fechar…

     Apaga-se de novo a luz, ficando iluminada a janela, em que a Lua muda agora de fase e apresenta uma imperceptível Lua nova.

Voz do Prof. Alexander Konstanz.- Não passou muito tempo sem que aqueles três pândegos se encontrassem de novo na mesma Cantina.

     Jurgen está já a regressar de encher a bilha no copo e vai servir à mesa.

Sten, o Oleiro.- (A berrar entre grandes risadas) Não demores mais, Ladulas. Conta lá as últimas andanças da morte…

     Lötar e Björn apanham-no pelo ombro, brindam e bebem.

Björn, o Pedreiro.- …Continuará a avançar inexorável para Svenljunga?
Lötar, o Carpinteiro.- …Estará já a bater às nossas portas?

     Jurgen serve ao cego, que espera o fim da sua frase para dar o primeiro golo.

Ladulas, o Cego.- A morte vai errando para os lados de Vänersborg.
Sten, o Oleiro.- Ainda bem que se afastou de nós…
Lötar, o Carpinteiro.- Ela é inconstante e muda muito de rumo…
Björn, o Pedreiro.- Não faças caso, Ladulas, continua…
Ladulas, o Cego.- A morte chama-se hoje Kirsti, e está a passar a noite em Lilla Edet. Espera chegar amanhã a Uddevalla para visitar uma sua parenta doente. Não conseguirá vê-la com vida.
Sten, o Oleiro.- Não, se as visitas de alguns parentes podem ser nocivas…
Lötar, o Carpinteiro.- À saúde de Kirsti e toda a sua família…

     Brindam todos e bebem. Jurgen começa a recolher a mesa.

Jurgen o Velho.- Vamos rapazes, vamos para casa…

     Apaga-se toda a iluminação, fora a da janela, em que se vê a Lua mudar de nova para quarto crescente.

Voz do Prof. Alexander Konstanz.- A estação estava para se acabar, igual que a sidra nova. Logo chegariam as grandes neves. Mas os três amigos ainda deveriam de encontrar-se mais uma vez naquele local.

     Ao se acender de novo, Jurgen acaba de servir a taça de Ladulas, e logo se dirige para o copo. O seu andar não é tão lento e taciturno como costuma.

Lötar, o Carpinteiro.- Acontece alguma coisa, Ladulas? Não sei, vejo-te especialmente estranho…
Sten, o Oleiro.- Especialmente? (Ri)
Jurgen o Velho.- (Desde o copo, a encher a bilha) Fora as preocupações, rapazes. Haja boa camaradagem e alegria. Convida a casa.
Ladulas, o Cego.- Hoje estivemos todos nós num grande perigo…

     Jurgen enche as taças, de que eles bebem calados e sôfregos.

Björn, o Pedreiro.- (Pretendendo sorrir) Vamos, Ladulas, não queiras assustar-nos…
Ladulas, o Cego.- A morte hoje andou perto de aqui. Mas passou ao largo…
Lötar, o Carpinteiro.- (Tentando disfarçar, com alívio fingido, o alívio que sente) Brindo por isso!

     Vão beber, mas descobrem que as taças já estão vazias. Há como um arrepio silencioso. Jurgen, que se lhes tinha reunido, regressa para o copo com passo decidido, bem prevenido de bilha e caço.

Jurgen o Velho.- Não há-de faltar munição para um novo brinde.
Ladulas, o Cego.- Chamava-se Jorunn e era uma viúva miserável que vinha pelas ribeiras do Ätran, a pedir esmola. Tivemos imensa sorte. Eu bem vi ontem à noite que rendia jornada nas ruínas do Castelo de Birger, e temi uma desgraça. Mas hoje acordou e retomou o seu caminho, evitando a vila. Não se afastou dos lamaçais da veiga. Fez sesta no pomar de Christian, e, ao entrar no bosque, sentou-se um momento no toco de um abeto que há ao pé do caminho. Limpou a lama das galochas, e logo seguiu para Mjöback, sem nada ter feito, nem falar com ninguém…

     Ficam todos calados, com a cabeça baixa, a olhar o interior das suas taças vazias. Falam com esse vazio e falam para si.

Björn, o Pedreiro.- Dessas ruínas tirei a pedra para fazer esta casa…
Lötar, o Carpinteiro.- Da madeira desse abeto eu fiz estes bancos e esta mesa…
Sten, o Oleiro.- Com esse barro lavrei eu estas taças…

     Jurgen deteve a marcha e permanece de pé, de costas para o público, estonteado, com o caço e a bilha pendendo de dois braços sem peso.

Jurgen o Velho.- …e com as maçãs desse pomar é com que tenho feito a sidra que as enchia.
Ladulas, o Cego.- (A enfiar na sua narrativa) E sabeis o mais curioso do caso?…

     Vai diminuindo a luz. Todos continuam a falar para si mesmos.

Sten, o Oleiro.- A morte amassara o barro…
Lötar, o Carpinteiro.- A morte encarregou a mesa…
Björn, o Pedreiro.- A mesma morte que derrubou o castelo mandou fazer a casa…
Jurgen o Velho.- Todos fomos obreiros de uma burla da morte…

     Ficam todos na penumbra. Um pouco da luz da Lua continua a iluminar confusamente o rosto de Ladulas.

Ladulas, o Cego.- O mais curioso é que, quando ia chegando ao desvio de Kinna, começou a nublar-se a sua imagem…
Lötar, o Carpinteiro.- A morte chama-se Lötar.
Björn, o Pedreiro.- A morte chama-se Björn.
Sten, o Oleiro.- A morte chama-se Sten.
Jurgen o Velho.- A morte chama-se Jurgen.

     Na janela começa a destacar-se, contra o fundo, menos escuro, da noite, o contorno da hábito negro da morte, e uma caveira se ilumina sob o seu capuz.

Ladulas, o Cego.- (Cada vez mais veemente) …E agora já não posso mais vê-la. Estais a ouvir, rapazes! Não sou capaz de ver a morte! Já sou igual a todos vós! Já não alcanço ver para além da Lua!

     Ergue-se com os braços abertos, fazendo rolar a taça. Na janela acaba de se desenhar a imagem da morte que olha para o interior. Agora descobrimos que a forma do crescente é a da folha da gadanha que apoia no seu ombro. Começa a fechar-se o pano.

 

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