v2jguisantabuaocre006.html
Antes
de acabar de fechar-se, já as mãos começam a bulir. A
mão direita apanha o copo, que ficou evidentemente
diante do pano, e dispõe-se a aproximá-lo de novo aos
lábios, com a ajuda, claro está, de novos operários e
cordas. Enquanto realizam a complexa operação, a voz
põe-se a falar. |
Prof. Alexander Konstanz.-
E daí veio o costume de, quando os moços bebiam nas
tradicionais taças de barro, depois do trago arrojarem a taça
contra o chão dizendo: quem sabe se amassou o barro a
morte?!
Consegue
levar por fim o copo aos lábios. Ouve-se o
seu esforço para sorver o pouco líquido que fica.
Depois os manipuladores que alçam o copo desatam as
cordas e arrojam o copo, desde o alto, indo cair por
trás dos bastidores, enquanto aqueles que manejam a mão
imitam o movimento que o impele. |
Como
se devesse ser culpado o recipiente do dano que nos possa fazer o
seu conteúdo. (Pensa um bocadinho) Por certo, que juraria que
este copo estava bastante mais cheio
Bom, bom, bom
Histórias, como estas, de aparecimentos, contam-se muitas na
minha terra, mas nenhuma mais engraçada que a de O
Travesso Sorenson
Começa
a abrir-se de novo o pano. |
Vai-se
descobrindo, ao fundo, um bocadinho para a direita, a
perspectiva nocturna de um caminho dividida em dois
painéis armados sobre rodas. Cada painel representa um
lado do caminho, com arvores semelhantes sobrepondo-se de
maior a menor. Entre eles haverá uma estrutura metálica
independente, também armada sobre rodas, em que Sorenson
irá montando a sua atalaia. Elementos que serão
manejados pelos seus correspondentes manipuladores, que
agora não se vêem, pois toda esta parte do palco se
encontra iluminada com luz ultravioleta.
O Travesso Sorenson entra
pela esquerda. Traz pendurada do ombro uma saca de ir às
peras. Ri de quando em vez com um riso impertinente,
agitado e nervoso. Tira do chão alguns paus longos que
vai atravessando entre as ramadas das últimas árvores
da perspectiva. |
Voz do Prof. Alexander
Konstanz.- Era este Sorenson um brincalhão de marca,
que não pensava noutra coisa senão em troçar dos seus
vizinhos.
Mas, sobre tudo, gostava
de assustar as pobres gentes que, por diversos motivos, tinham
que se aventurar de noite pelo bosque.
Acabada
a ramada, o Travesso Sorenson, começa a ascender por
ela, até se encarrapitar no alto, a olhar para o
público. Então tira da saca um lençol branco com que
se cobre da cabeça aos pés, deixando dois furos,
abertos nele, à altura dos olhos. |
E
chamavam-lhe O Travesso não só por isto. Também
porque a sua burla preferida consistira em se atravessar entre
duas árvores, por meio de paus que tendia entre as ramadas, com
um lençol branco sobre o corpo, que lhe davam todo o aspecto de
um fantasma suspenso no ar.
Aparecem
pela esquerda dois almocreves, com fatos de bombazina e
chapéus de abas. Puxam de cordas, atrás das quais
emergem duas cabeças de mula, que ficam mesmo assim, a
assomar apenas no canto dos bastidores. Os almocreves
fazem de conta que continuam a andar, sem se mexer do
sítio. São os painéis e a estrutura em que se suporta
Sorenson, que avançam para eles, traçando a curva do
caminho, como esse caminho fosse uma fita transportadora.
|
Era
capaz de passar horas e horas assim, à espera de algum médico,
parteira, feirante ou almocreve que calhasse passar por aquele
caminho
Quando
o caminho chega a alinhar-se com os
almocreves, estes descobrem o fantasma arrepiados.
Sorenson limita-se a berrar o típico Huuuu e
os almocreves fogem espavoridos a arrastarem as mulas,
que não deixam de rinchar e arquejar a cabeça. Sorenson
solta uma estrepitosa risada ao mesmo tempo que se fecha
rapidamente o pano. |
As
mãos recuperam por um momento a sua actividade. |
Prof. Alexander Konstanz.-
Mas o realmente engraçado aconteceu uma noite em que o Travesso
Sorenson se encontrava, como tantas outras, atravessado no
caminho à espera de alguma vítima para a sua zombaria.
Volta
a abrir-se, com idêntica rapidez, o pano. |
Aparece
o mesmo caminho que na cena anterior, mas já à
espreita,situado como na curva do seu trajecto. O
fantasma está colocado entre as ramadas e agita-se
levemente, não se sabe se pelo vento, a intranquilidade,
ou pelo frio. |
Voz do Prof. Alexander
Konstanz.- Levava horas e horas de espera e estava
começando a impacientar-se. Estranhos pensamentos assaltavam a
sua mente.
O Travesso Sorenson.- Que é o que está a
acontecer aqui? Já nem me lembro quanto tempo há que espero
inutilmente a chegada dalgum patife a que assustar. Onde se
esconde hoje todo o mundo? Sinto-me só, cansado e aborrecido. É
que não vai passar ninguém esta noite por este caminho?
Pergunto-me, pela primeira vez, que diabo estou a fazer eu tanto
tempo encarrapitado nesta ridícula estacada.
Voz do Prof. Alexander Konstanz.- E então foi
quando reparou, também pela primeira vez, que os paus com que
costumava armar a sua frágil atalaia, jaziam pelo chão, uns
espalhados pelo chão, outros ainda bem enfeixados, ao pé do
tronco em que os costumava esconder.
Agarrou-se então melhor
aos ramos mais próximos, temendo não ter sido hoje demasiado
cuidadoso na construção.
Mas logo começou a
preocupar-se quando, ao recolher cuidadosamente uma ponta do
lençol para observar onde se tinha pousado, descobriu que o
vulto que até então tinha considerado como o seu pé direito,
era, realmente, a ponta de um galho, com um gomo que muito se
assemelhava com o seu dedo gordo.
O
Travesso Sorenson vai realizando fielmente tudo quanto o
professor diz. O orador muda intempestivamente o tom de
voz. |
Então,
de repente, apareceu um homem que vinha correndo e assustado!
Sorenson
alça a vista, também assustado, como se tivesse ouvido
a exclamação do orador. Entra pela esquerda Larsson com
uma lâmpada de latão na mão. |
O
Travesso Sorenson esboçou um leve
O Travesso Sorenson.- Huuuu
!
Voz do Prof. Alexander Konstanz.-
antes
por costume que por vontade. Mas o homem, em lugar de se
assustar, pareceu tranquilizar-se com a sua presença
Larsson.- (Detendo-se e iluminando com a sua
lanterna a figura) Viva, Sorenson! Estava aí! Bonito susto
nos pregou
O Travesso Sorenson.- Já não era sem tempo que
alguém reconhecesse o meu mérito. Mas diga, Larsson, onde anda
todo o mundo, que hoje não passa vivalma por cá
?
Larsson.- Onde quer que estejam
Andam à
sua procura. Não estava a falar do susto de agora, mas dessoutro
que nos está a pregar desde ontem
O Travesso Sorenson.- Que está a dizer de
ontem
e quem tem que andar à minha procura? Denunciaram-me
à justiça?
Larsson.- Vamos, Sorenson, deixe já de
brincar
Foi uma das suas, não? Leva mais de um dia
desaparecido. Desde ontem à tarde nem voltou à casa nem
ninguém o viu. Todos os vizinhos andam no mato desde que caiu a
noite, os mais pela beira-rio, para ver se
enfim, já você
entende
O Travesso Sorenson.- Desde ontem à
tarde
? Não é possível
Larsson.- Foi das boas, Sorenson, pode-se muito
orgulhar
e desculpe, vou avisar os outros para suspenderem
a busca
Larsson
sai de novo a correr. Sorenson fica pensativo. |
Voz do Prof. Alexander
Konstanz.- (Com ênfase) Foi só então que o
Travesso Sorenson compreendeu
Inicia-se
então uma complexa transformação. Os painéis, junto
com a figura do fantasma, começam a se deslocar, num
princípio, exactamente igual que o tinham feito antes.
Mas, depois de fazer a curva, em vez de ficar quase
perpendiculares ao público, como aconteceu então,
prosseguem o seu giro até ficarem de costas para a
plateia. Então as trajectórias começam a divergir. Os
painéis laterais continuam, em linha recta, até ao
fundo. Quando se viraram descobrimos que, na parte
posterior, apresentavam o mesmo desenho de árvores em
perspectiva que na anterior. Mas a estrutura que está a
suster o fantasma não os acompanha. Ao contrário,
começa a vir para a frente, em direcção ao público,
para melhor podermos apreciar que o lado posterior do
lençol está vazio e não há pessoa alguma por trás (O
disfarce cobria só até à nuca). É como um molde de
figura humana escavado no tecido. O efeito global
pretende dar a sensação de uma objectiva que faz
zoom sobre o objecto que chama a sua
atenção, entanto se ouve, algures não sei onde, um
grito desesperado. |
que
estava morto, que a sua burla se tinha feito realidade, que o
lençol branco já não era o seu disfarce, mas a sua pele
E
(Pausa. Mudança significativa no tom de voz)
Sorenson sentiu que, pela primeira vez, estava em paz com o
mundo. (Ouve-se um riso franco) e conta-se que Sorenson o
Travesso, riu, riu muito. Riu francamente, também pela primeira
vez
Riu francamente, com toda a alma, da burla com que o
mundo tinha saldado as contas com ele.
O
lençol vazio contorce-se como um corpo oco. Logo, sem
que deixem de se escutar os risos, mais fracos e
espaçados, o lençol desce por umas ramadas que só
intuímos na escuridão. Ilumina-se um zona do chão em
que aparece o corpo do Travesso Sorenson caído, com o
seu saco prendido no ombro. O seu molde fantasmagórico
examina-o com curiosidade. A voz do orador acompanha os
movimentos. |
E
o fantasma verdadeiro, o Sorenson verdadeiro, desceu da árvore e
descobriu no chão o seu próprio corpo sem vida. Compreendeu
logo que tinha morrido a noite anterior, ao se quebrar uma das
estacas por que ascendia para repetir a sua eterna troça. Não
sentiu pena por ter perdido a vida assim daquela vez. Sentiu pena
de ter perdido a vida assim tantas outras vezes.
Diz a história que o
Travesso Sorenson se guardou ele próprio no seu saco de ir às
peras, e que se foi retirando devagarinho e em silêncio, e que
sempre se comportou como um defunto respeitável, um espírito
pacífico e risonho que nunca assustou ninguém
O
fantasma tirou, do seu próprio corpo morto, o saco que
trazia no ombro, e mãos invisíveis foram introduzindo
nele o lençol branco, até desaparecer completamente.
Então os painéis do fundo começam a avançar,
devagarinho, para o proscénio, enquanto o saco só,
pendurado de um ombro imaginário, começa a
caminhar para o fundo.
Continuam a sua marcha
depois de terem atravessado, e mais continuariam se não
fosse a voz do Secretário/Coordenador. |
Voz do
Secretário/Coordenador.- Desculpe, professor Konstanz,
mas estamos já fora de horário/tempo, importar-se-ia de ir
concluindo/acabando?
As
mãos acordam intempestivamente e começam a
mover-se sem critério, destrambelhando os painéis, que
se encontravam mais ou menos à sua altura. Logo acabam
recolhendo-os e encartando-os como notas
soltas, e com eles retiram-se por um lateral. |
Voz do Prof. Alexander
Konstanz.- Em absoluto. E muito obrigado pelas essas
elogiosas palavras
Senhoras, senhores: Isto é tudo
Nas conclusões deste Congresso penso que se verá com maior
claridade a relação entre estas histórias e o tema da minha
palestra, seja ele qual for.
** Poder-se-ia inserir, neste ponto, um dos intervalos de que se
fala na nota final.