A Tábua Ocre de Núbia (ou o Significado da Vida)

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Quadro III: Cenas 3ª, 4ª, 5ª e 6ª.

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Cena 3ª

 

     Antes de acabar de fechar-se, já as mãos começam a bulir. A mão direita apanha o copo, que ficou evidentemente diante do pano, e dispõe-se a aproximá-lo de novo aos lábios, com a ajuda, claro está, de novos operários e cordas. Enquanto realizam a complexa operação, a voz põe-se a falar.

Prof. Alexander Konstanz.- E daí veio o costume de, quando os moços bebiam nas tradicionais taças de barro, depois do trago arrojarem a taça contra o chão dizendo: “quem sabe se amassou o barro a morte?!”…

     Consegue “levar” por fim o copo aos lábios. Ouve-se o seu esforço para sorver o pouco líquido que fica. Depois os manipuladores que alçam o copo desatam as cordas e arrojam o copo, desde o alto, indo cair por trás dos bastidores, enquanto aqueles que manejam a mão imitam o movimento que o impele.

     …Como se devesse ser culpado o recipiente do dano que nos possa fazer o seu conteúdo. (Pensa um bocadinho) Por certo, que juraria que este copo estava bastante mais cheio… Bom, bom, bom… Histórias, como estas, de aparecimentos, contam-se muitas na minha terra, mas nenhuma mais engraçada que a de “O Travesso Sorenson”…

     Começa a abrir-se de novo o pano.






Cena 4ª

 

     Vai-se descobrindo, ao fundo, um bocadinho para a direita, a perspectiva nocturna de um caminho dividida em dois painéis armados sobre rodas. Cada painel representa um lado do caminho, com arvores semelhantes sobrepondo-se de maior a menor. Entre eles haverá uma estrutura metálica independente, também armada sobre rodas, em que Sorenson irá montando a sua atalaia. Elementos que serão manejados pelos seus correspondentes manipuladores, que agora não se vêem, pois toda esta parte do palco se encontra iluminada com luz ultravioleta.
     O Travesso Sorenson entra pela esquerda. Traz pendurada do ombro uma saca de ir às peras. Ri de quando em vez com um riso impertinente, agitado e nervoso. Tira do chão alguns paus longos que vai atravessando entre as ramadas das últimas árvores da perspectiva.

Voz do Prof. Alexander Konstanz.- Era este Sorenson um brincalhão de marca, que não pensava noutra coisa senão em troçar dos seus vizinhos.
     Mas, sobre tudo, gostava de assustar as pobres gentes que, por diversos motivos, tinham que se aventurar de noite pelo bosque.

     Acabada a ramada, o Travesso Sorenson, começa a ascender por ela, até se encarrapitar no alto, a olhar para o público. Então tira da saca um lençol branco com que se cobre da cabeça aos pés, deixando dois furos, abertos nele, à altura dos olhos.

     E chamavam-lhe “O Travesso” não só por isto. Também porque a sua burla preferida consistira em se atravessar entre duas árvores, por meio de paus que tendia entre as ramadas, com um lençol branco sobre o corpo, que lhe davam todo o aspecto de um fantasma suspenso no ar.

     Aparecem pela esquerda dois almocreves, com fatos de bombazina e chapéus de abas. Puxam de cordas, atrás das quais emergem duas cabeças de mula, que ficam mesmo assim, a assomar apenas no canto dos bastidores. Os almocreves fazem de conta que continuam a andar, sem se mexer do sítio. São os painéis e a estrutura em que se suporta Sorenson, que avançam para eles, traçando a curva do caminho, como esse caminho fosse uma fita transportadora.

     Era capaz de passar horas e horas assim, à espera de algum médico, parteira, feirante ou almocreve que calhasse passar por aquele caminho…

     Quando o “caminho” chega a alinhar-se com os almocreves, estes descobrem o fantasma arrepiados. Sorenson limita-se a berrar o típico “Huuuu” e os almocreves fogem espavoridos a arrastarem as mulas, que não deixam de rinchar e arquejar a cabeça. Sorenson solta uma estrepitosa risada ao mesmo tempo que se fecha rapidamente o pano.






Cena 5ª


     As mãos recuperam por um momento a sua actividade.

Prof. Alexander Konstanz.- Mas o realmente engraçado aconteceu uma noite em que o Travesso Sorenson se encontrava, como tantas outras, atravessado no caminho à espera de alguma vítima para a sua zombaria.

     Volta a abrir-se, com idêntica rapidez, o pano.






Cena 6ª


     Aparece o mesmo caminho que na cena anterior, mas já “à espreita”,situado como na curva do seu trajecto. O fantasma está colocado entre as ramadas e agita-se levemente, não se sabe se pelo vento, a intranquilidade, ou pelo frio.

Voz do Prof. Alexander Konstanz.- Levava horas e horas de espera e estava começando a impacientar-se. Estranhos pensamentos assaltavam a sua mente.
O Travesso Sorenson.- Que é o que está a acontecer aqui? Já nem me lembro quanto tempo há que espero inutilmente a chegada dalgum patife a que assustar. Onde se esconde hoje todo o mundo? Sinto-me só, cansado e aborrecido. É que não vai passar ninguém esta noite por este caminho? Pergunto-me, pela primeira vez, que diabo estou a fazer eu tanto tempo encarrapitado nesta ridícula estacada.
Voz do Prof. Alexander Konstanz.- E então foi quando reparou, também pela primeira vez, que os paus com que costumava armar a sua frágil atalaia, jaziam pelo chão, uns espalhados pelo chão, outros ainda bem enfeixados, ao pé do tronco em que os costumava esconder.
     Agarrou-se então melhor aos ramos mais próximos, temendo não ter sido hoje demasiado cuidadoso na construção.
     Mas logo começou a preocupar-se quando, ao recolher cuidadosamente uma ponta do lençol para observar onde se tinha pousado, descobriu que o vulto que até então tinha considerado como o seu pé direito, era, realmente, a ponta de um galho, com um gomo que muito se assemelhava com o seu dedo gordo.

     O Travesso Sorenson vai realizando fielmente tudo quanto o professor diz. O orador muda intempestivamente o tom de voz.

     Então, de repente, apareceu um homem que vinha correndo e assustado!

     Sorenson alça a vista, também assustado, como se tivesse ouvido a exclamação do orador. Entra pela esquerda Larsson com uma lâmpada de latão na mão.

     O Travesso Sorenson esboçou um leve…
O Travesso Sorenson.- Huuuu…!
Voz do Prof. Alexander Konstanz.- …antes por costume que por vontade. Mas o homem, em lugar de se assustar, pareceu tranquilizar-se com a sua presença…
Larsson.- (Detendo-se e iluminando com a sua lanterna a figura) Viva, Sorenson! Estava aí! Bonito susto nos pregou…
O Travesso Sorenson.- Já não era sem tempo que alguém reconhecesse o meu mérito. Mas diga, Larsson, onde anda todo o mundo, que hoje não passa vivalma por cá…?
Larsson.- Onde quer que estejam… Andam à sua procura. Não estava a falar do susto de agora, mas dessoutro que nos está a pregar desde ontem…
O Travesso Sorenson.- Que está a dizer de ontem… e quem tem que andar à minha procura? Denunciaram-me à justiça?
Larsson.- Vamos, Sorenson, deixe já de brincar… Foi uma das suas, não? Leva mais de um dia desaparecido. Desde ontem à tarde nem voltou à casa nem ninguém o viu. Todos os vizinhos andam no mato desde que caiu a noite, os mais pela beira-rio, para ver se… enfim, já você entende…
O Travesso Sorenson.- Desde ontem à tarde…? Não é possível…
Larsson.- Foi das boas, Sorenson, pode-se muito orgulhar… e desculpe, vou avisar os outros para suspenderem a busca…

     Larsson sai de novo a correr. Sorenson fica pensativo.

Voz do Prof. Alexander Konstanz.- (Com ênfase) Foi só então que o Travesso Sorenson compreendeu…

     Inicia-se então uma complexa transformação. Os painéis, junto com a figura do fantasma, começam a se deslocar, num princípio, exactamente igual que o tinham feito antes. Mas, depois de fazer a curva, em vez de ficar quase perpendiculares ao público, como aconteceu então, prosseguem o seu giro até ficarem de costas para a plateia. Então as trajectórias começam a divergir. Os painéis laterais continuam, em linha recta, até ao fundo. Quando se viraram descobrimos que, na parte posterior, apresentavam o mesmo desenho de árvores em perspectiva que na anterior. Mas a estrutura que está a suster o fantasma não os acompanha. Ao contrário, começa a vir para a frente, em direcção ao público, para melhor podermos apreciar que o lado posterior do lençol está vazio e não há pessoa alguma por trás (O disfarce cobria só até à nuca). É como um molde de figura humana escavado no tecido. O efeito global pretende dar a sensação de uma objectiva que faz “zoom” sobre o objecto que chama a sua atenção, entanto se ouve, algures não sei onde, um grito desesperado.

     …que estava morto, que a sua burla se tinha feito realidade, que o lençol branco já não era o seu disfarce, mas a sua pele… E… (Pausa. Mudança significativa no tom de voz)… Sorenson sentiu que, pela primeira vez, estava em paz com o mundo. (Ouve-se um riso franco) e conta-se que Sorenson o Travesso, riu, riu muito. Riu francamente, também pela primeira vez … Riu francamente, com toda a alma, da burla com que o mundo tinha saldado as contas com ele.

     O lençol vazio contorce-se como um corpo oco. Logo, sem que deixem de se escutar os risos, mais fracos e espaçados, o lençol desce por umas ramadas que só intuímos na escuridão. Ilumina-se um zona do chão em que aparece o corpo do Travesso Sorenson caído, com o seu saco prendido no ombro. O seu molde fantasmagórico examina-o com curiosidade. A voz do orador acompanha os movimentos.

     E o fantasma verdadeiro, o Sorenson verdadeiro, desceu da árvore e descobriu no chão o seu próprio corpo sem vida. Compreendeu logo que tinha morrido a noite anterior, ao se quebrar uma das estacas por que ascendia para repetir a sua eterna troça. Não sentiu pena por ter perdido a vida assim daquela vez. Sentiu pena de ter perdido a vida assim tantas outras vezes.
     Diz a história que o Travesso Sorenson se guardou ele próprio no seu saco de ir às peras, e que se foi retirando devagarinho e em silêncio, e que sempre se comportou como um defunto respeitável, um espírito pacífico e risonho que nunca assustou ninguém…

     O fantasma tirou, do seu próprio corpo morto, o saco que trazia no ombro, e mãos invisíveis foram introduzindo nele o lençol branco, até desaparecer completamente. Então os painéis do fundo começam a avançar, devagarinho, para o proscénio, enquanto o saco só, pendurado de um ombro imaginário, começa a “caminhar” para o fundo.
     Continuam a sua marcha depois de terem atravessado, e mais continuariam se não fosse a voz do Secretário/Coordenador.

Voz do Secretário/Coordenador.- Desculpe, professor Konstanz, mas estamos já fora de horário/tempo, importar-se-ia de ir concluindo/acabando?

     As mãos “acordam” intempestivamente e começam a mover-se sem critério, destrambelhando os painéis, que se encontravam mais ou menos à sua altura. Logo acabam “recolhendo-os” e encartando-os como notas soltas, e com eles retiram-se por um lateral.

Voz do Prof. Alexander Konstanz.- Em absoluto. E muito obrigado pelas essas elogiosas palavras… Senhoras, senhores: Isto é tudo… Nas conclusões deste Congresso penso que se verá com maior claridade a relação entre estas histórias e o tema da minha palestra, seja ele qual for.

     Escuro total**.






** Poder-se-ia inserir, neste ponto, um dos intervalos de que se fala na nota final.

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