v2jguisantabuaocre008.html
Ao
abrir-se, o pano deixa ver no centro do cenário uma
espécie de promontório ou montículo, com forma de
pedúnculo ou cone invertido, rematado numa larga meseta,
como esses que costumam aparecer nas ilustrações
medievais das vidas dos santos eremitas. No alto da
Meseta aparece Nicário, com um hábito desfeito, longa
barba e cabelos, espessamente esguedelhados, cruz de
madeira ao peito, a flagelar-se com uma disciplina de
cinco pontas.
O chão ao lado da meseta
é de cor da areia. Com as correspondentes ondulações,
representa o deserto. Espargidas desordenadamente, mas, a
grosso modo, pelos cantos da cena, aparecem uma série de
cidades formadas por maquetas, em relevo, de casas
brancas, rematadas em terraços ou em pequenas cúpulas.
Ao pé podemos ler (é uma licença) as inscrições,
supomos, relativas aos seus nomes, escrita em inegável
alfabeto copto-menfítico. Achamo-nos diante, sem
dúvida, de uma autêntica Tebaida dos
Pequenitos.
Percorrem o alto do
cenário algumas nuvens isoladas e algumas aves
migratórias esporádicas. Uma esfera dourada, pendurada
também, representa o Sol. O conjunto quer ter um ar como
de presépio ou ilustração antiga de vida de santos,
com as suas perspectivas pouco coerentes e uma forma
cândida de representar a majestade das rochas e a
imensidade do deserto. |
Voz do Padre Alexei
Konstantinov.- Nicário era um moço de família
abastada, da muito nobre vila de Heracliópole, que, tendo
abraçado a nova Fé, que se estendia, então, como mais uma
cheia do Nilo sobre o solo de Egipto, decidiu retirar-se, como
era moda entre a juventude daquela época, para as ardentes
solidões do deserto da Tebaida, para ali arrastar uma vida de
sofrimentos e privações. Às vezes deixava mesmo de
flagelar-se, para que as novas vergastadas não destruíssem as
chagas que lhe tinham produzido as anteriores, e aliviassem o seu
prurido.
E vivia assim, sem ver um só rosto
humano em todo o dia. Subsistia com o escasso leite que conseguia
tirar de uma cabra selvagem que o Muito Misericordioso Criador
concedeu enviar-lhe. Repartia todo o seu amor entre as poucas
criaturas que habitavam aquele ermo, tentando doutriná-las na
Boa Nova, como faria, séculos mais tarde, São Francisco de
Assis.
Nicário,
que efectivamente deixou a disciplina, recebe a visita de
uma cabra esquálida, surgida da escuridão, e de um sem
número de simpáticas cobras verdes, que andam meio
incorporadas, e que não deixam de falar numa Língua
bífida, aguda e acelerada. |
São Nicário.- (A
falar às cobras) Tendes que ser boas umas com as outras, e
também com todas as restantes criaturas, por serem obra do
Supremo Fazedor, e em especial respeitai e sede sempre corteses e
amáveis com a vossa irmã, a cabra, que oferece cada dia o
sustento imprescindível para que este pobre servo do Criador
possa continuar na sua vida de penitência e oração
.
Todas
as serpentes assentem, parecendo compreender, e, sem
nunca deixar de fazer engenhosos comentários no seu
sibilante silabar, juntas em apertado ramalhete, começam
a entoar, dedicado à cabra, algum canto do género
Auld Lang Syne, numa versão, naturalmente,
bífida e sussurrante.
A cabra, a cuja
esquerda cresce um mato de ervas secas e ralas, e a cuja
direita o orfeão das cobras serpentes parece pasto mais
fresco e abundante, depois de o considerar brevemente,
toma uma decisão e come de vez o apertado ramalhete de
serpentes. A seguir começa ela a adoptar um tom
esverdeado. Tem como um suor frio e um gesto como que a
dizer: O que eu fiz!. Tarde de mais: dá um
pulo, cai deitada e desaparece. |
Voz do Padre Alexei
Konstantinov.- Todo o bem que fazia Nicário, tornava-se
mal para ele. Mas o seu coração transbordava bondade, e não se
importava em a esbanjar generosamente. Tomara como divisa o
provérbio evangélico de retribuir o bem pelo mal. Por isso ele
estava disposto a martirizar a sua carne para purificar o seu
espírito
Tudo para que o Supremo Fazedor lhe concedesse o
dom de fazer milagres e poder com eles aliviar os sofrimentos dos
outros. Pensava que a sua dor serviria assim para enxugar a dor
do próximo
e mesmo do afastado.
De
uma das cidades do fundo emerge um grupo de pessoas de um
tamanho desproporcionado ao das casas, mas mesmo assim
muito pequenas (São marionetas). Agitam os braços a um
tempo, e berram em uníssono. |
Coro dos Pequenos
Suplicantes do Fundo.- Nicário, os nossos gados estão
a morrer de sede. Os nossos campos secam ao Sol. Os camelos têm
um aspecto terrível, com todo o pelo enredado. Pela tua
santidade, pelo poder que esse teu Deus te deu, faz com que
chova
e poderemos regar os campos, lavar os camelos, e se
sobra água, baptizar-nos também
Nicário
ajoelha e benze uma das escassas nuvens que percorrem o
céu. |
São Nicário.-
Ó Senhor, Tu que separaste as águas da terra e as águas dos
céus. Tu que fizeste as nuvens, pois és o Supremo Fazedor de
toda a criatura. Tu que governas tudo quanto se move debaixo da
abóbada celestes, faz com que esta descarregue com abundância e
generosidade todos os seus dons sobre aquelas pobres gentes
O
Senhor concedeu-lhe, com efeito, o dom do milagre, pois
um raio de luz sai da sua mão em direcção à nuvem.
Acontece, porém, que foi tão longa a sua invocação
que. quando o raio chega. a nuvem já passou, e, no seu
lugar, vai atingir uma ave que voava por ali, a qual
descarrega o único dom que as aves podem descarregar
sobre nós, em cima daquelas pobres gentes.
Nicário, então,
aponta para uma outra nuvem e faz um novo ensaio,
tentando resumir os conceitos. |
Senhor,
tu que podes, faz com que caia ao chão de vez!
Lança
a sua bênção, mas erra o alvo, o vento muda o rumo da
nuvem, e vai atingir o Sol, que começa a pôr-se num
entardecer acelerado.
Vai-se fazendo
escuro sobre a voz do narrador. |
Voz do Padre Alexei
Konstantinov.- E é que Nicário era um santo que não
tinha muito boa sorte
Ele só queria fazer bem, mas o bem
sempre lhe saía mal
Porque Nicário era uma espécie de
Charlot da Tebaida
Um santo a que mesmo os milagres lhe
saiam mal
E o milagre que pior se lhe dava era precisamente
o mais necessário ali: fazer chover.
Volta
a amanhecer. Nicário está a flagelar-se. |
São Nicário.- A
culpa é só minha. Pecado de orgulho é o meu. Como estas mãos
pecadoras podiam ter obrado as maravilhas do Senhor! Foram elas
que crucificaram Jesus Cristo. Nem Herodes, nem Pilatos, nem
escada, nem soldados, na cruz preguei-o eu só, sem ajuda. Não
sou digno de ser Teu instrumento, nem sequer essa escova com que
limpes todo o esterco do mundo
Voz do Padre Alexei Konstantinov.- Com as
disciplinas, Nicário queria arrrojar todos os pecados do mundo
às suas costas, e sentia-se mesmo culpado de tentar, ainda que
fosse mal, fazer o bem
Aparece
uma nuvem a estibordo. Nicário, que a vê,
desembainha a bênção com a mão esquerda,
sem deixar de se flagelar com a direita. Aponta para ela
e dispara o seu raio milagroso. |
São Nicário.-
Excelentíssimo Senhor, etc. etc. etc.: Faz com que se desfaça
em água, já, ámen!
Mas
a disciplina intercepta a trajectória do raio,
converte-se ela em água e vai borrifar toda a cara do
santo, cujas guedelhas estão tão necessitadas dela como
pêlo de camelo.
Nicário, de
joelhos, alça os braços, a vista e a voz ao céu. |
Que
é que tenho feito de mal agora? (Pensa ter sido inoportuno e
modera o tom) Ó Senhor, Tu que governas no mais alto, Tu que
diriges o destino das nações, Tu, sem cujo consentimento não
se mexe nem a mais pequena erva nem o mais humilde passarinho,
envia-me um sinal que eu possa compreender. Digna-te indicar por
meio das tuas criaturas o que me quiseres dizer
Uma
sombra de majestosas asas projecta-se sobre Nicário. Uma
música angelical começa a soar. Essa atmosfera de
milagre que precede o momento em que se desvelam os
desígnios do Altíssimo, enche a meseta e o desterro. Um
vento sobrenatural sacode a escassa mata de erva seca.
Nicário leva as mãos aos olhos como deslumbrado por uma
luz especial. As asas começam a pregar-se e despregar-se
lentamente. A sombra desloca-se sobre Nicário. De
repente cessa a música, e uma abundante carga de
detritos de ave cai sobre a sua cabeça, ao mesmo tempo
que vemos o ventre de uma cegonha atravessar,
bamboleante, o alto do cenário. Imediatamente o número
de sombras multiplica-se, assim como a chuva de detritos
que cai sobre a sua cabeça. Finalmente, o vento arranca
as ervas secas do chão e estampa-as contra a cabeça
besuntada do eremita, que, com esforço, consegue limpar,
ao menos, a zona dos olhos. Ao longe, um bando de
cegonhas continua imperturbável a sua migração. |
Por
fim vejo-o claro. Ó Tu, Senhor de tudo quanto foi criado, como
sabes falar ao coração do homem! Agora entendo o meu erro
impiedoso. Quem seria tão cego para não compreender o teu
sinal? Estava a pecar mais uma vez contra a humildade. O meu
retiro era só pura vaidade. Não podia, em solidão, este teu
servo ser humilhado, pois precisa da presença de outros
semelhantes para abaixar o seu orgulho. Devo descer aonde habitam
os homens, e ainda um pouco mais baixo. Devo pôr-me ao seu
serviço. Ser o último entre eles. Carregar sobre mim a dor de
todos. Retribuir o bem pelo mal, amar os meus inimigos
(A
recolher com os dedos uma parte dos detritos que cobrem o seu
rosto e a olhá-los como coisa maravilhosa) Este é um sinal
inequívoco de que já estou preparado para ser a tua escova!
Graças, ó Pai de tudo quanto existe, e perdoa-me por ter-te eu
obrigado a estragares em mim tão bom esterco
São
Nicário começa a descer da sua meseta ao vale. À porta
da primeira cidade aparece um homem sustido em
rudimentares muletas. Falta-lhe metade da perna direita e
pede esmola. |
Voz do Padre Alexei
Konstantinov.- E Nicário desceu das suas altas
solidões à procura do mundo e do seu mal, para fazer nele todo
o bem que sabia..
Encontrou um dia, à porta da cidade um pobre aleijado que pedia
esmola, e disse-lhe
São Nicário.- Bom irmão, dar-te-ia a minha
perna, se isso não fosse contra as leis do Altíssimo e não for
presunção pensar que ias andar melhor com o meu tosco membro
que com essas soberbas muletas
Permite-me porém que, não
podendo eu auxiliar-te, seja ao menos fiel instrumento da graça
nas mãos do Senhor
(Abençoa a perna coxa) Ó
Senhor, tu que fizeste andar a Lázaro e saraste tantos
necessitados, faz com que a este pobre homem cresça no joelho
uma perna nova.
Do
joelho do homem surge a parte de perna que lhe faltava.
Ele arroja as muletas, mas em lugar de berrar
Milagre!, começa a desatar, inquieto, umas
cordas que levava atadas na coxa. Vira-se levemente, e
vemos que, desse joelho saem agora duas perna, com o seu
correspondente pé: uma sustida no chão e outra dobrada,
que não pode esticar. Com dificuldade apanha uma das
muletas e arroja-lha a São Nicário, que já prosseguia
a sua santa peregrinação. Apesar do forte golpe nas
costas, Nicário vira-se beatífico para ele. |
Muito
obrigado, irmão, mas não sou digno de merecer a tua muleta, nem
tu tens nada que me agradecer, mas ao Supremo Criador, de quem eu
só fui um meio para obrar a maravilha.
Voz do Padre Alexei Konstantinov.- E assim
continuou espalhando a sua bondade por toda a parte, sofrendo, em
contrapartida, dos homens tão só maldade e incompreensão.
Diante
de uma outra cidade aparece outro homem na mesma
situação que o anterior. Nicário examina-o bem, por
diante e por trás, e, como para sangrar-se em saúde,
diz apenas: |
São Nicário.- Ó
Senhor, faz com que este homem tenha deste lado uma perna em tudo
igual a estoutra.
Abençoa-o
e cresce-lhe uma perna inteira. O homem deita as muletas
e vai levantar os braços em sinal de alegria, mas,
quando vai começar a correr, dá-se conta de que tem
duas pernas direitas. Tenta sair trás de Nicário, mas
não consegue dar um passo e tem que se conformar com
arrojar-lhe a muleta. |
Ó irmão, quanta generosidade a tua: deste-me com a almofada e
não com a ponta!
Voz do Padre Alexei Konstantinov.- Até que um
dia chegou à muito corrupta cidade de Amarna, onde pôde
descobrir que a fama da sua santidade se tinha já estendido por
todo o vale
Irrompem
em primeiro lugar duas metades de arcada que se vêm
juntar no centro, formando a porta da cidade, de que o
resto do cenário se converte em paisagem. Com elas
irrompem mulheres, mercadores, ociosos e vadios. Um
tráfego habitual de mercado copto dos começos da Era.
Apoiado numa esquina, um aleijado, com muletas, pede
esmola. Ao vê-lo, Nicário dirige-se a ele, mas, antes
que consiga esboçar o primeiro gesto da bênção, o
aleijando deita as muletas e foge a bom correr. Então
interrompe a corrida, pensa melhor e vira-se para ele a
berrar. |
Aleijado.-
Milagre! Milagre!
São Nicário.- (Virando-se de costas)
Faz favor, deposita aqui as tuas muletas
.
Mas
o aleijado, inacreditavelmente, não descarrega as suas
maletas sobre ele. Abraça-o e continua a berrar
Milagre. Muitas pessoas se agrupam ao seu
redor e dão mostra de reconhecimento e admiração.
|
Voz do Padre Alexei
Konstantinov.- Era o primeiro milagre que lhe saía bem
na sua vida! Nicário não sabia como agradecer ao Criador, mas
não demoraria a descobrir que, apesar disso, tinha que pagar
sempre o bem que fazia com o mal que sofria
Quando
se vai retirar, virando-se mais uma vez para abençoar
todos os congregados, acontece que passa um escravo
carregando umas tábuas, nas quais vai bater o seu
joelho, ficando a perna inutilizada. As pessoas ajudam-no
a levantar-se, e o aleijado, em sinal de reconhecimento,
oferece-lhe as suas muletas. Dessa maneira Nicário
acerca-se de um maneta que pede esmola noutro canto da
rua. Abençoa-o e, no ponto, cresce-lhe um braço e uma
mão novos, com que, sem dizer uma palavra, descarrega
uma sonora bofetada na face do santo. |
Maneta.- Então,
agora
toda a vida a trabalhar
quem te pediu,
implicante?!
São Nicário.- Ó Senhor, Tu que nos ensinaste
a dar a outra face: eu não sou digno de receber uma bofetada
como esta, dada com mão tão frouxa e mole
Não: Senhor,
Pai de tudo quanto foi criado, dá-lhe a este homem toda a força
que te for possível, na sua nova mão
O
braço novo do Maneta começa a crescer e inchar
visivelmente. Mas este, em vez de dar uma nova bofetada a
Nicário, que já está a apresentar a outra face, aperta
a sua mão cheio de alegria. |
Maneta.- Ah! Isso
está melhor: assim posso fazer uma fortuna como gladiador, que
é regalada vida
Dá cá esses cinco
e quando
quiseres bilhetes para o Circo, não deixes de me avisar
A
mão de Nicário sai de entre as mãos do novo gladiador
feita puré. Com uma mão inútil, e com muletas,
Nicário vai-se aproximando de um cego que pede no outro
canto, não sem certa cautela. |
São Nicário.- (Ao
cego) Irmão, tu queres ver?
Cego.- E não vou querer? Boa pergunta!
São Nicário.- Mas desejas realmente, com
força e sem temor, recuperar a vista?
Cego.- Daria um olho, e mesmo ambos, para poder
ver.
São Nicário.- Aceitarias então que eu, em
nome do Deus dos Cristãos, devolvesse a luz aos teus olhos?
Cego.- Já tinha ouvido falar desse novo
produto. Vamos tentar.
São Nicário.- Senhor, Deus, tu que saraste o
cego da Betsaida, e tantos outros mais, faz com que este homem
veja a luz do dia, para que veja a luz da tua graça também,
ámen.(Benze-o)
Cego.- (A pular de alegria) Vejo! Vejo!
Posso ver! Milagre! Milagre! Como o teu Deus é verdadeiro! Posso
ver o mundo, tal e como tinha prometido. Ele é que sabe cumprir
as suas promessas: aí estão as casas e as pedras, como
testemunhas
e as pessoas, também, e as fontes, e os
anjos
Eh! Aqui há qualquer coisa que não funciona! Onde
estão os anjos?
São Nicário.- Deixa-me que te instrua na tua
nova Fé: os anjos estão no céu.
Cego.- Ah! Desculpa
sim, já disso tinha
alguma notícia
(Alça a vista e procura)
mas no céu só vejo azul, e uma pequena nuvem
e um bando
de cegonhas, lá longe, em plena migração
que foi dos
anjos?
São Nicário.- Quem te disse que ao abrir os
olhos poderias ver anjos?
Cego.- (Ameaçador) Um dos teus,
brejeiro, trapaceiro, velhaco, enganador
Disse-me há tempo
que existiam uns anjos com asas de muito belas cores e túnicas
de seda, e cabelos louros
e que um desses anjos guiava os
meus passos
e já devia eu ter receado depois da primeira
pancada contra a fonte
Se eu queria a vista, não era para
olhar estas paredes e estas pessoas que já tenho
aborrecidas
Era só para poder contemplar as suas asas
ondulantes de pavão, rebrilhando contra o Sol, nas tardes de
Verão, a desdobrarem-se em mil irisações cada vez que os
incomodasse uma mosca
Vem cá, falsificador de milagres,
santo sem licença
. Dá-me a vista completa, ou devolve-me
a minha cegueira
O
Cego apanha Nicário pela dobra do capuz e introduz sem
piedade a ponta dos seus dedos nos olhos do santo. Depois
de deixá-lo contorcendo-se de dor, no chão, sai com
passo decidido, berrando em altas vozes. |
Exijo
ver o Governador: venderam-me um milagre, e faltavam-lhe os
anjos!
São Nicário.- (Tentando levantar-se com
dificuldades) Coitadinho, vai-te ser tão difícil ver o
Governador como os anjos. E esse juro que sim vinha no lote.
Voz do Padre Alexei Konstantinov.- Mas a
notícia da santidade de Nicário tinha corrido já pelas ruas de
Amarna, à mesma velocidade que as pernas do primeiro aleijado
que curara.
Quando
Nicário consegue pôr-se de pé, tem diante de si uma
enorme bicha de pessoas a queixarem-se de todas as eivas
ou escalavros possíveis. |
E
Nicário não duvidou em socorrê-los, ainda conhecendo que o
justo pagamento pela ousadia de curá-los havia de ser sofrer os
males que sarara
Era o que ele pretendia: retribuir o bem
pelo mal
Mal
sustido nas muletas, com a mão de benzer destrambelhada,
e os olhos quase inteiramente fechados, vai recebendo um
a um os suplicantes, ouve os seus pedidos, e benze-os
como pode. Chega um homem com a coluna arqueada. Benze-o.
O homem endireita-se e, imediatamente sente um estalo no
espinhaço e fica contorcido. Chega uma mulher com uma
orelha vendada. Fala-lhe ao ouvido. Nicário assente.
Benze-a. A mulher tira a venda, cheia de alvoroço. Chega
um homem com uma venda na outra orelha. Fala-lhe ao
ouvido, mas Nicário faz sinal de que lhe fale pelo outro
lado. Logo benze-o, o homem cura, e, ao paciente
seguinte, Nicário tem que lhe pedir que se explique por
sinais. A partir de aqui todos os demandantes mimarão as
suas doenças. Estômago, rins, quadris, pulmões,
garganta, laringe
não há órgão, osso, febra ou
víscera de Nicário que fique indemne. Há mesmo uma
senhora gorda, e de certa idade, que solicita, com signos
inequívocos, rebaixar um pouco de aqui, outro pouco de
ali, reduzir barriga, subir peito, esticar a face, um
lifting, a manicura, pedicura e comentários
de actualidade. Nicário satisfaz todos os pedidos, ao
mesmo tempo que o seu corpo enxuto vai sofrendo uma
série de intempestivas ampliações. |
Mas
aquilo não era fazer milagres
era uma contínua
transfusão de doenças e fracturas
Por paradoxos do
destino Nicário viu-se a salvo graças a uma inesperada
intervenção do Exarca da cidade, o cru e malvado Nicéforo
Demóctonos, e a sua guarda pessoal de pretores da plebe.
Irrompem
uns estranhos soldados meio egípcios, meio romanos,
armados de paus, com que vão espancando a todos quantos
encontram no caminho, respeitando só a pessoa de
Nicário. Abrem passo a Nicéforo Demóctonos, que traja
também numa moda mista, greco-egipto-romana. Túnica com
molduras esquisitas de púrpura senatorial guarnecida de
fivelas douradas, a cabeça rapada e os olhos pintados
como um hieróglifo. Avança pelo corredor aberto até
onde se encontra Nicário. |
Nicéforo Demóctonos.-
És tu esse que dizem que tem poderes e que anda a curar as
pessoas sem licença, quando os meus doutores, apesar de tê-la
não a usam
São Nicário.- Os poderes não são meus, mas
do Altíssimo, nosso Criador e Senhor.
Nicéforo Demóctonos.- Ahahá! Assim que temos
também usurpação de funções
! Sabes que há denúncias,
muito bem fundamentadas, por teres praticado milagres
fraudulentos, e que estás a infringir importantes preceitos da
Academia Copta de Medicina, Cirurgia e Embalsamamento de Tebas?
São Nicário.- Eu só estou a cumprir os
desígnios dEle.
Nicéforo Demóctonos.- Ahahá! Temos
maquinação
temos associação criminal
Não vai
haver cruzes suficientes para ti.
São Nicário.- Não sou digno de morrer como
Ele nem sequer numa só.
Nicéforo Demóctonos.- Desconheço essa
jurisprudência que me citas
Mas hoje sinto-me generoso e
vou perdoar-te a vida com uma só condição. Que salves a do meu
filho. Os médicos de palácio não conseguem curá-lo, e isso
que já operaram de urgência quatro ou cinco pombas! De modo que
avia-te, e vem cear connosco, e depois das oportunas libações
cura-o de vez com essa mãozinha que Deus te deu..
São Nicário.- Não posso entrar no teu
palácio, nem gostar das tuas viandas, nem pousar em brandas
almofadas. Entende-o, se assim o fizesse, todo o meu poder se
esvairia e nada poderia fazer pelo teu filho.
Nicéforo Demóctonos.- Não vais comer e beber,
e cobrar a tua soldada, antes de tratares o meu filho? Tinha
razão o cego! Que classe de médico és tu? (Condescendente)
Sit pro ratione voluntas. Seja como quiseres. Hei-de-te trazer
meu filho aqui eu próprio. Não penses em fugir. Se foges,
mandarei cortar-te as pernas! Vale!
Retiram-se
todos voltando a espancar o público, e respeitando
sempre a pessoa do santo. Como resultado da entrada e
saída de Nicéforo Demóctonos, reproduzem-se os males
de todos aqueles que tinham sido curados. Quem curara o
ouvido, foi golpeado no ouvido. Quem curara a perna,
levou pancada na perna, etc. A bicha inicial
reconstrói-se diante da desesperação de Nicário. |
Voz do Padre Alexei
Konstantinov.- E como submeter o seu corpo a tais
demandas suporia pecar atentando contra a própria vida, Nicário
tirou da petição do governador, uma ideia salvadora.
São Nicário.- Sinto muito não vos poder
atender, irmãos, mas acabo de me especializar em pediatria.
Voz do Padre Alexei Konstantinov.- E é que,
quanto menor for o corpo, menor poderá ser a porção de órgão
afectado como consequência do milagre.
Ao correr a notícia, todas as mães de Amarna trouxeram os seus
filhos
A
bicha desfaz-se e uma corrente de mães correntes, com os
filhos ao colo, começa a desfilar diante de Nicário,
que os colhe um momento, abençoa e devolve às mães,
sentindo todo o mais um pequeno prurido às vezes, alguma
pequena pancada no joelho etc. |
O único senão foram os lactantes com os primeiros dentes
Nicário
leva a mão à boca, doendo-se de tantos hóspedes
inesperados. De repente, no fluxo de mães, há uma que
lhe entrega o filho e quando Nicário vai observar o que
tem, foge pelas suas costas sem dar palavra. |
São Nicário.- O
menino nada tem, minha senhora
(Repara na fugida) Nem mãe
agora
Mas Deus acaba de lhe dar um pai que velará por ele
para sempre.
Voz do Padre Alexei Konstantinov.- E Nicário
acolheu aquele bebé como mais uma bênção que o Criador lhe
enviava em troca de tantas outras que ele dera.
Nicário,
com o bebé no colo, continua a benzer outros que as
mães lhe apresentam. De repente alguns dos congregados
começam a cair para os lados. Aparecem as bengalas da
guarda pessoal do Governador, e detrás dela, com passo
senatorial através de um corredor de corpos machucados,
chega Nicéforo Demóctonos com um bebé embrulhado em
roupas senatoriais de talha infantil. Apresenta-lho a
Nicário. |
Nicéforo Demóctonos.-
Eis meu filho! Os médicos dizem que só lhe fica uma hora de
vida. E nisso dou-lhes crédito: a sua especialidade é a morte.
Voz do Padre Alexei Konstantinov.- E Nicário
duvidou. Pela primeira vez duvidou se fazia bem fazendo bem, ou
se fazia melhor sem fazer nada
A
multidão, comovida, rodeia Nicário neste transe. |
Um na Multidão.-
Não faças, Nicário. Se fizeres, antes de uma hora és homem
morto.
Um Outro na Multidão.- Os nossos achaques são
pouca coisa, mas isto é uma questão de mais polpa.
Outro na Multidão.- Não faças, Nicário:
vais-te sacrificar, afinal, pela estirpe, de quem?
São Nicário.- Não tem o filho culpa das
maldades do pai. E na mesma, devemos retribuir sempre o bem pelo
mal
Voz do Padre Alexei Konstantinov.- Mas Nicário
olhou para o seu filho e sentiu que deveria albergar
a mesma ternura para o filho do outro. E vendo o seu, aliás,
fazia-se-lhe menos dura aquela prova, pois sabia que alguma coisa
dele ia ficar na Terra, e que a sua santidade teria um
herdeiro
E, sem deixar de apertar aquele
bebé contra o peito, Nicário virou-se, e benzeu devagar o filho
do outro.
Nicário
faz tudo isso. O Governador olha para o seu filho,
arregala os olhos, e põe-se a dar provas de alegria
arrojando-o (é de plástico!) ao alto e recolhendo como
uma bola ou um troféu facilmente conseguido. |
Nicéforo Demóctonos.-
Funciona! Funciona! O meu filho recupera a cor, está a sorrir! A
partir de hoje só me dedicarei a abrir novos caminhos ao reino
do Senhor!
Vai-se,
sem deixar de lançar o embrulho ao alto. Os centuriões
continuam a abrir passo, não ao Senhor mas a ele, à
base da rica bengalada. Desta vez não se esquecem de
visitar as costas de Nicário. O Governador vira-se, sem
preocupar-se quase em recolher o filho, e com um sorriso
maléfico faz escárnio dele. |
Não
diz esse teu Deus que deves amar quem te faz mal. Isto é só
para que não deixes de amar-me. Não poderia suportar o teu
esquecimento!
Retiram-se
todos, não sem acabar de espancar Nicário, que só se
preocupa em proteger o filho.
Todos os
congregados formam então um círculo reverente ao redor
de Nicário, que passeia tranquilo, a embalar o filho,
enquanto espera a sua hora. Alguns ajoelham rendidos ante
a sua bondade, outros simplesmente ficam ajoelhados
porque não podem erguer-se depois das pancadas dos
centuriões. Lá estão, o Aleijado, o Maneta
O
próprio Cego, que o denunciara, ajoelha a seu pé,
comovido. |
Cego.- Agora é
que tenho visto um anjo do Senhor!
Cai
a tarde. Alguns funcionários acendem lâmpadas de azeite
nas esquinas. A paisagem do fundo vai-se tornando mais
intensa. O céu de um azul profundo. O deserto adquire
fulgor de cobre. Nicário fala, com um tom normal, aos
seus novos discípulos. |
São Nicário.-
Pois eu não sinto nada de especial! Havia tempo que não me
encontrava tão bem. Deviam de estar enganados esses aprendizes
de embalsamadores. Não é verdade, meu rei?
Olha
para o filho, destapando a cara que tinha coberto pelo
frio. Então é quando se produz a sua revolta. Nicário
começa a berrar em altas vozes, e todos os congregados
põem-se em pé com olhos desorbitados. |
Não!
Não! (Olha para o alto) Não pode ser. Isto é uma burla cruel!
O meu filho deixou de sorrir. Está a perder a cor. Não, não,
ele não! Não é justo! Nunca! Não.
Nicário,
alçando o filho em braços, como a apresentá-lo ao
Altíssimo, vai saindo da vila pelo arco fora, penetrando
no deserto e dirigindo-se à sua antiga meseta de
ermitão. A multidão corre atrás dele. Os arcos e toda
a decoração da cidade desaparecem pelo laterais.
Nicário vai ascendendo, sem nunca deixar de increpar ao
alto, ou suplicar veementemente ao Altíssimo. |
Isto
não pode ser obra tua, Senhor. Posso aceitar que todas as culpas
do mundo caiam sobre as minhas costas pelo único pecado de ser
bom e sabê-lo
Posso sofrer ver como os maus recebem todas
as tuas dádivas e os bons levam só pancadas
Quem sou eu
para entender os desígnios do Criador
Mas ele não, bom
Deus. Ele é inocente de tudo. Não pode ter participado na tua
crucifixão, tem uma coarctada perfeita! E como ia poder comer
daquela primeira maçã, se não tem dentes? Ele é inocente:
não pode sentir orgulho nem vaidade, nem inveja,
só fome,
doenças e abandono.
Nicário
atingiu o alto da meseta e, de joelhos, apresenta o
embrulho, ao alto. Os seus seguidores ficam na planície,
a olhá-lo. |
Descarga
a tua ira sobre este servo teu, castiga o meu orgulho de o não
ter, e todas as embrulhadas teológicas que quiseres
Mas
salva este inocente, que não tem culpa de eu o ter acolhido no
meu seio, e tê-lo tomado como filho. Deserdo-o. É isso que
queres? (Achega o embrulho) Não te reconheço! Já não
és filho meu! Fique o Estado com o saio e mais as disciplinas! (Volta
a apresenta-lo ao Alto) Mas salva-o, Senhor de tudo quanto
foi criado, Senhor Omnipotente das Alturas! Deus da Justiça,
salva-o!
Observa
o filho e nada tem mudado. Começa então a executar uma
e outra desesperada bênção sobre o seu rosto, mas,
pela expressão, sabemos que à sua mão lhe tem acabado
o isco.
Deposita o
embrulho no chão e, chorando, volta a increpar ao alto. |
Como
podes fazer isto Tu, Criador de tudo quanto existe, Senhor do
Céu e da Terra! Ouve-me, ouve-me, ouve-me!
Ouve-se,
mas é uma voz sobrenatural que diz: |
Voz.- Estou a
ouvir perfeitamente, Nicário. Há tempo que te ouço. Não me
maces. Mas
De
repente rasga-se o céu. Todos ajoelham, intimidados pela
Sua presença, alçando a vista de esguelha para ver se
por fim acontece o milagre.
Mas, por trás do
véu rasgado do céu, quem aparece é o Demónio, com os
seus chifres e cabeça de bode, sentando num trono de
ouro e um ceptro, com a bola do mundo, na mão. |
O Demónio.- (A
continuar a frase, pois era sua a voz)
quem pensavas que
sou Eu?!
Nicário
põe-se em pé, arranca a cruz de madeira que levava
pendurada do pescoço e esconjura-o. |
São Nicário.-
Ah, já percebo! Vade retro Satanás! Eu sabia que isto tudo não
podia ser obra dEle. Pelo seu poder ordeno-te: volta para
as trevas de onde saíste!
O
Demónio permanece no seu trono e ri, condescendente.
Alguns anjos, não sem certos traços diabólicos, agitam
deslumbrantes asas ao seu redor. Em baixo, o cego,
arregala os olhos, dando uma cotovelada a algum parceiro.
|
O Demónio.- Ha
ha ha
Estes caloiros! O que percebes tu? Não estavas a
chamar pelo Criador de tudo quanto existe, pelo Senhor da Terra e
mais do Céu? Pois tal sou Eu.
Nicário
observa com desconfiança a sua cruz, como quem não
entende que à sua lanterna lhe tenham acabado tão cedo
as pilhas. Mas reage. |
São Nicário.-
Não blasfemes! Deus é quem criou a Terra, o Céu, e tudo quanto
existe. Ele governa o movimento dos astros e o coração dos
homens. Tu próprio és obra dEle.
O Demónio.- Houve poucos que demorassem tanto
tempo a compreender. Tens muito que aprender, Nicário, e muito
te vai doer também. É mesmo tudo ao contrário. Fui Eu quem
criou o mundo. Como, senão, ia ser ele tal e como é? O próprio
Deus é obra minha.
São Nicário.- Não pode ser. Como pode o mal
criar o bem
?
O Demónio.- Que tenha Eu que discutir com um
simplório destes! (Doutoral e paternal) Não estás a
ver que se trata do mesmo problema teológico que no caso de ser
Deus o Criador, e eu a criatura? Como pode o bem criar o
mal
? Mas, no meu caso, tem uma solução facílima. Se
criei a pomba foi para alimentar o falcão, os pardais e as
borboletas, para alimento da cobra, da aranha e do escorpião.
Criei os bons, porque os maus precisavam de matéria em que
exercer o mal. Criei o bem tão só para gozar de vós. A ideia
de Deus foi uma das burlas mais cruéis que nunca me ocorreram,
devo, sem modéstia, confessar. Eu criei o bem tão só para me
rir da cara que punham todos os justos quando entravam no
inferno.
Ri
enquanto assinala com o ceptro para um ponto baixo do
firmamento em que se ilumina uma capela das almas, em que
todos aqueles que se consomem no lume levam coroa de
santo. |
São Nicário.- António,
Clemente, Ambrósio, Jerónimo, Gregório, Metódio, Cirilo
que fazeis vós aí?
São Cirilo.- Ele tem razão, Nicário.
Pregou-nos uma boa. Ora, se tivéssemos sabido, não estávamos
hoje a fazer esta figura
O
Demónio apaga esta visão e começa a rir. |
O Demónio.-
Ainda ecoam as abóbadas celestes a risada que soltei quando
metemos o Santo Job no caldeiro! Ha, ha, ha
Tinhas que ter
visto
pediu um advogado
começou a blasfemar
ha, ha, ha
a deitar brasas aos outros santos
ha, ha,
ha
tarde de mais, meu caro
ha, ha, ha
São Nicário.- Então, todos os males que
sofrem os bons na Terra, para nada servem, não são provas de
Deus, são
O Demónio.-
o seu justo pagamento, desde o meu ponto de
vista. Vejo que estás a compreender. E para te dar as
boas-vindas ao nosso clube, faço-te uma oferta especial. Se
quiseres devolver a vida ao teu filho, só tens que desejar a
morte do filho do Governador. A troca é tentadora, e ainda
ganhas pontos para a tua vida eterna, aqui, à minha destra
São Nicário.- Não! Não! Que a minha alma se
condene, mas não!
O Demónio.- (A rir) Ó Nicário,
quanto me hei-de divertir contigo ainda!
A
imagem esvai-se, mas Nicário continua a olhar para o
mesmo ponto. |
São Nicário.-
Podes rir quanto quiseres, que nem por isso eu vou entregar-me a
ti! A luta continua! Nem que fosses o senhor do Universo
Dantes pensava querer o bem tão só pelo amor de Deus
Acabas de ensinar-me a amar o bem tão só pelo próprio
bem
Voz do Padre Alexei Konstantinov.- Assim
começou a rebelião de Nicário contra o Altíssimo, a revolta
da sua criatura contra o Senhor da Criação. Mas esta inesperada
revelação produziu uma enorme confusão entre os
discípulos
Uma Voz na Multidão.- Também é pena: tantos
deuses no mundo, e nem um é verdadeiro. Um diabo só, e resultou
ser certo.
Uma Outra Voz na Multidão.- Para isso fazia eu
oferendas a Ísis
Idem.- Para isso fiz eu sacrifícios a
Júpiter
Idem.- Para isso paguei eu tributo ao
Imperador
Idem.- Quanto vinho derramado por Juno
Idem.- Quanto cordeiro sacrificado a Ámon
Idem.- Quanta cera esbanjada em Santo António
Abade
Idem.- Tantas esmolas, na festa do Patrão!
Idem.- Investir no bem não foi uma feliz ideia.
É mais rentável entregar ao mal nossas acções.
Uma Voz na Multidão.- Ó Nicário, que devemos
fazer: o mal ou o bem, visto quem tem agora o poder
?
Uma Outra Voz na Multidão.- Se antes devíamos
fazer o bem para contentar o Criador, não seria lógico fazer o
mal agora que já sabemos quem é?
O
Cego apanha aquele que calha mais perto e começa a
torcer-lhe uma orelha. |
O Cego.- Sinto-o
amigo: não irás comparar a beleza da tua orelha com a das asas
dos anjos?!
Vários
seguem o seu exemplo e começam a bater-se e atirar
pedras. Nicário, desde a meseta vira-se para eles. |
São Nicário.-
Não, não! Devemos fazer o bem sempre. Não da mesma forma
estúpida que eu até hoje o fiz. Devemos apreender a fazer bem o
bem. Se o mal rege os destinos do Universo, rebelemo-nos
Façamos o bem, embora seja em contra dos desígnios do Senhor.
É a única forma de lhe arrancar ao mal a nossa justa porção
de Paraíso. Não precisamos ser heróis do bem. Chega com nunca
sermos heróis do mal. Não é preciso retribuir o bem pelo mal.
Para que o mundo fosse o paraíso bastaria que retribuíssemos
sempre o bem pelo bem. Mas o mundo há-de ser sempre dos maus,
segundo consta nos planos do Supremo Fazedor. Sim
e,
contudo, quando alguém nos faz bem e lhe pagamos com bem, então
temos conseguido um pedacinho pequeno de paraíso que nem Ele,
com todo o seu domínio, nos poderá nunca roubar.
O
auditório aquieta-se. O Cego deixa a orelha do outro. |
O Cego.- Tá bem,
tá bem
Terei que me consolar a sonhar com as suas asas, e
a pintar ícones com as cores que sonhei
Apaga-se
devagarinho a luz. O cego apanha o enorme pincel que o
narrador deixara no proscénio e vai desenhando com ele,
sobre a negrura do céu, um ícone copto, com virgens e
palmeiras, com rostos e rosáceas, em sucessão de
vermelhos e dourados, água-marinhas e pretos, densamente
agrupados com forma sintética de um asa de anjo. Quando
o termina, o ícone começa a bater asas e vai-se,
atravessando, a voar, o alto do cenário. |
Voz do Padre Alexei
Konstantinov.- E São Nicário Ateu (e não nos deve
estranhar por isso o sobrenome), seguiu a pregar o bem pelas
cidades, já não por amor de deus, mas do bem mesmo. E pregava
com o exemplo, fazendo todo o bem que podia, embora já não
aceitasse ser o tapete em que todo o mundo fosse espanador.
Volta
a iluminar-se a cena. O mesmo deserto de antes. Mas num
canto, Nicário, com outras pessoas, estão a cavar na
terra. Ao pé deles uma espécie de torre de madeira, com
uma corda e um balde, também em miniatura, como as
cidades disseminadas aos cantos. |
Continuou
a fazer todo o bem que podia, já não com milagres, mas as suas
próprias mãos. Ainda que as coisas, às vezes, voltassem a sair
torcidas. Como naquela ocasião em que ajudando os seu vizinhos a
cavar um poço
Nicário
bate forte com uma enxada, e da terra surge um jacto. |
em
vez de água foi encontrar um manancial de um líquido escuro,
com mau cheiro, e que se incendiava ao aproximar-lhe o fogo.
O
jacto preto forma, junto com a torre de madeira, uma
composição que não deixa de lembrar uma torre de
extracção de petróleo. Os vizinhos fazem gestos de
desgosto e pejorativos, como a dizer: Tinha que ter
sido ele.
Faz-se um escuro
rápido. Ao acender-se a luz de novo, a torre de
petróleo desapareceu. Nicário jaz no centro do
cenário, ao pé da sua meseta. |
Mas
nem por isso deixou Nicário de proporcionar água aos seus
vizinhos. E foi talvez o seu mais modesto e mais lindo milagre.
Porque um dia, como não podia deixar ser, morreu. Os seus
discípulos foram enterrá-lo ao pé daquela gruta em que tinha
sido, não sabemos se santo ou se estúpido
Alguns
dos moradores de Amarna que tínhamos visto dantes, vão
até ao proscénio e apanham a folha de papel que o pope
tinha garatujado, e que ficara ali esquecida. Apanhando-a
pelos seus cantos avançam, com passo cerimonial, até ao
corpo de Nicário, e cobrem-no com ela. |
E
o Maligno, que não queria deixar de castigar, até ao final, a
sua rebeldia, mandou então chover
Começa
a cair uma chuva, primeiro fina, e logo torrencial, desde
o mais alto. Alguns discípulos permanecem algum tempo de
pé, com os hábitos ensopados. A maioria foge, porém, e
desaparece pelos laterais. Afinal fica o corpo só. A
água da chuva vai esbarrando, no folha, os traços
pintados a pincel. Correm fios de tinta pelo chão, e só
ficam finalmente os primitivos signos horizontais da
Tábua Ocre de Núbia no papel. |
para
estragar a cerimónia e que fosse menos gente ao seu enterro,
sim
mas, sobretudo, para que não ficasse memória da sua
existência na Terra.
Por esta razão os autores da
lápide da sepultura não acabaram de escrever o texto que
relatava a sua história. Os doutores da Igreja, naquela altura,
albergavam sérias dúvidas de se tinha morrido em santidade ou
não, e proibiram, sob pena de excomunhão, acabar a obra. Ainda
que alguns, de que a história também não conservou memória,
ousassem postular, então, que se Deus fosse realmente sábio e
justo, não havia de consentir na sua glória santo nenhum que,
como Nicário, não tivesse sido um bom ateu.