Contos do Outono

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Um "capacete azul" na cabeça dum galego

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Bandadas de pássaros não achavam acougo em lado nenhum

    Bandadas de pássaros não achavam acougo em lado nenhum. Ora erguiam daqui ora passavam ali. A cada detonação trocavam de lugar. O fulgor dos bombardeios ouvia-se lá na zona muçulmana. Na parte croata caíam menos bombas... Numa casinha de um só andar estavam reunidos representantes croatas com dous agentes da "Companhia". A casinha muito acolhedora e pequeninha, com telhado de piçarra e paredes brancas, janelas e portas verdes, toda a zona está cheia de pequenas casas deste tipo nuns desgastados outeiros com outros mais grandes e pronunciados um tanto mais longe... Estreitas estradas vão unindo estas pequenas casinhas às aforas de Mostar.
    Por parte croata, além dos militares de escolta, estava o primeiro lider local e mais dous, os três com responsabilidades num autoproclamado "governo"...
    Os dous membros da "Companhia" chegaram ali num blindado branco com as iniciais UN, procedentes de território controlado por muçulmanos.
    Eram as dezasseis horas nos relógios locais. No blindado aguardavam quatro soldados armados, um deles oficial e de nome Carlos Lopes, do regimento de capacetes azuis espanhóis que patrulhavam na cidade e zona de Mostar. A missão que ali se desenvolvia estava abençoada pola ONU e obviamente os militares presentes ignoravam a pertença à "Central de Inteligência" dos dous negociadores que naquela mesa pediam autorização aos croatas para transportar "ajuda humanitária" em helicópteros à parte muçulmana e em troca deles, os croatas, também seriam obsequiados com "ajuda"... Os croatas pediam que um dos helicópteros com o seu armamento lhes fosse entregue polo favor! Finalmente chegaram a um acordo... Mas havia-se de guardar silêncio, os próprios capacetes azuis podiam desfazer a operação, pois ignoravam os tratados ali realizados... Os croatas assentiam gostosos. O cargamento "humanitário" partiria desde navios situados na foz do Neretva.
    -Quiçá me proponha que não inspeccionemos o carregamento humanitário que vocês entregarão aos muçulmanos? -demanda irritado o número um croata.
    -Isso não, podem inspeccionar os navios... Mas se vocês erguessem muito barulho poderiam fazer o mesmo os muçulmanos, colocar inspectores na operação seria perigoso, não acredita?
    -Bom...
    Resultava muito difícil fazer qualquer trato com aquelas gentes, tão curtidos em cem batalhas sanguinárias e sem regras minimamente humanas de jogo.
    Concretizaram os pontos onde se situariam os navios com o carregamento, os pontos para fazer a entrega da "ajuda", etc. Seria o trinta de Agosto e às oito da manhã começaria o trabalho...
    A reunião tinha lugar na sala central da casinha. Uma mesa duns quatro metros de longo, de madeira vernizada de cor castanha... dous floreiros, água mineral e acima das cabeças dos ali reunidos duas lâmpadas grandes equidistantes.
    O Wilmam tem quarenta anos, é ruivo e é o mais alto de todos os presentes na sala, representa à ONU oficialmente... O outro representante que também o é da "Companhia" ou "Central de Inteligência" igual que o Wilmam, tem cinqüenta e três anos, é moreno e mede um metro e setenta centímetros aproximadamente, chama-se Óscar. Para os escoltas, para o capitão Carlos Lopes, aqueles novos negociadores que a chefatura enviava agora eram estranhos no lugar. Sem embargo não achava qualquer cousa anormal... Aquela guerra dava situações novas a cada instante.
    O Carlos Lopes entrara no exército muito jovem e sem muita vocação. A pouco de terminar a primeira parte do bacharelato foi-se lá a um exame a Madrid e já não voltaria com os seus companheiros. Agora apontara-se voluntário naquela honrosa missão... Mais grosso e igual de ruivo, mas careca também.
    Os novos negociadores já terminaram seu trabalho. O Carlos aguardava-os ao pé do blindado branco, agora havia que os transportar à Gavela... "e depois regressar a Jablanika e não sei que outra história..." pensa o Carlos.
    Outros dous blindados uniram-se ao do capitão e agora já formando fila dirigiam-se àquele lugar que chamavam Gavela... "Lembra-me uma palavra galega"... O Carlos ia olhando polos diminutos gachinelos a paisagem polas ribeiras do Neretva. Por toda a parte as pegadas da guerra. Carros crivados a balaços... Árvores caídas, casas queimadas. Triste paisagem. "Que caralho é o que a mim se me estraviaria neste belo país? O carro blindado, a metralhadora, as detonações. Quando termine tudo isto é que tenho que visitar um psiquiatra. Ou trinta, maldito seja eu e todos os homens! Mas, que estou a dizer? Estes todos que vão a meu lado ignoram que vou pensando e chorando por dentro. Vai-se-me dessangrando o coração. O meu pai, quem o ia dizer, não morreu na guerra em Rússia... Esteve com a Divisão Azul, forçoso, e agora o meu pobre pai agoniza dum cancro na minha terra, e eu cá! Maltidos sejam os homens, aqueles que não têm que tirar tiros mas que são os que começam as guerras".
    O Carlos ia sério, de quando em vez levava sua mão direita às pálpebras dos olhos para limpar as lágrimas. Comunicaram-lhe que seu pai estava nas últimas... Um cancro era o culpável da sua dor. Tanta morte naquela terra maltratada e por quê tinha também que a morte, com a terrível gadanha, viajar à sua pequeninha aldeia? Não alcançava a compreendê-lo. O capitão Lopes tinha recolhido com as suas próprias mão restos humanos ciscados polo chão. Mãos de criança, tripas e até olhos... Ele sabia bem que se encontrava no limite da resistência, por vezes tinha visões estranhas, olhava-se a ele próprio com um cuitelo degolando mulheres, ora disparando-lhe aos que ele achava culpáveis daquilo, ora comendo suas próprias deposições... Alguns prisioneiros muçulmanos foram obrigados a fazê-lo. Esse conhecimento não se ia da sua cabeça. Um simples conhecimento fazia que ele se visse realizando aquelas cousas. E de novo na sua cabeça batia com força um recordo. O seu progenitor, ora lembrava-o quando miúdo brincava no seu regaço, ora nas faínas do campo...
    "...Como me picavam as suas barbas, eram uns canhotos adoráveis, que jovem era então e quanto gostava eu das histórias que me contava da sua guerra de Rússia... A quarenta quilómetros de Moscovo, o rio "Volchó"... Que bem dizia, no rio Volchó, atacaram-nos, cruzamos, transportamos... E logo também falava muito no lago "Imem"... E os aviões que "aterravam" na água e eu contradizia-o... como aterrar aviões no mar? Tu cala rapaz, tu que sabes! E eu fazia com a cabeça sinais negativos... E agora eu cá, nem posso tocar-lhe ainda que fosse por última vez. Deus! Fuzilemos a morte! Que mal me sinto agora... Lembro todos os despreços que fizem a meu pai, maldição, por que é que os lembro? Castigo de Deus! Ora a direita ora à esquerda, o rio Neretva, este é o meu "Volchó" e não posso já contar-lhe a ele a história. Mas eu não poderia contá-lo, jamais como ele o fazia. A sua história semelhava uma festa, ele é que o narrava daquele jeito tão gracioso que para os ouvidos daquelas crianças que escuitávamos era uma delícia de imagens com bela música celestial. E a quem vou contar eu as minhas andanças polo meu "Volchó", filhos não tenho! Além disso, para que quero contar nada? Quem pode estar interessado em saber que estas minhas mãos tiveram por uns segundos os olhos dum miúdo ou o braço duma moça muçulmana que instantes antes me tinham obsequiado com uma flor? Quem pode estar interessado em saber que com estas mãos tivem que retirar dum blindado a um companheiro morto ou que arrastar os corpos queimados de quarenta muçulmanos, homens, velhos, miúdos e mulheres, todos civis e inocentes. Agora escuitam-se detonações dum lado e do outro do rio e eu cá no meio... Não tenho medo porque tanta dor me tirou o medo, a vergonha e a ética e também a conciência... Não tenho conciência, agora mesmo dar-me-ia igual matar um que cem sérvios, tenho que me esforçar para compreender que os sérvios não têm culpa da manipulação que fizeram de seu próprio medo os dirigentes radicais da sua etnia. E não há pior inimigo que aquele que padece pânico. É perigoso... Desde que começara este conflito eu não posso viver com normalidade, tenho problemas com o estómago, com o ventre e com a mente... Não acredito em nada, creio que se esqueceu até Deus destas gentes... Agora as detonações são de artilharia, sim, se nos alcançam teremos problemas... Mas não tenho medo. Ignorava que para esta zona houvesse desputas? Que longe fica tudo... A infancia, minha estadia em Lugo de estudante, para sempre guardarei a lembrança de aqueles amigos do grupo do seminário. Onde andarão? Os meus amores primeiros... Bom, para que pensar neste inferno?"
    Em Gavela apearam-se os dous representantes da "ONU" e estavam já de regresso para Jablanika.
    De Gavela a Jablanika havia poucos quilómetros mas muitos obstáculos. Semelhava um jogo de computador de caça ao homem. "Agora detenhem-te num controlo croata depois noutro muçulmano... Isto não tem fim. E polos vistos aginha teremos que escoltar um comboio humanitário a Sarajevo..." O Lopes cavilava em voz alta. O soldado que compartilhava o reduzido e imediato espaço no interior do blindado olhava para ele com preocupação.
    "Meu pai era, além de tudo, matachim. Corria a contorna matando os porcos de toda a comarca. Nos meses de Dezembro e Janeiro ia ele de matança em matança. Chegava às tantas da madrugada mas ainda assim erguia-se muito cedo para lhe dar de comer às vacas... Eu sabia que na algibeira do sobretodo tinha os melindros que sempre guardava para mim da ceia anteior... Guardava-os para seu miúdo..."
    O Lopes repassava agora todas as cousas de importância, ou não, que junto de seu pai lhe tinham acontecido. Cada lembrança era como um cuitelo que se lhe metia no coração de jeito violento. Agora que sabia o final do pai, seu cérebro era o vídeo que todo o reproduz...
    A noite ia botando-se acima. Levavam duas horas detidos aguardando a que os croatas deixassem passar num controlo a uns cinco quilómetros de Mostar em direcção a Jablanika. Ouviam-se detonações rio acima. Subitamente dous carros com canhões de ametralhadora e com a bandeira croata surgiram a toda velocidade, um soldado gritava dando ordem de retroceder. O Lopes com voz enérgica deu ordem de situarse detrás duns penedos que havia à parte direita. Todos se tiraran dos blindados e correram a refugiar-se. Os disparos surgiam por toda a parte... à esquerda o rio, à direita os penedos e escoltando o quadro geral as montanhas donde procediam balas e mais balas... Os muçulmanos atacavam forte, os croatas respondiam desde mais longe com a artilharia. Novo controlo, agora polos muçulmanos que avançavam metros e de novo também mais tempo detidos...
    A história continuava. A quem importava no mundo aqueles incidentes de não haver mortes de Capacetes Azuis? E ainda assim, não todos os soldados da ONU eram iguais...
    Em Jablanika poucos, do quartel geral dos Capacetes Azuis espanhóis, sabiam que existia uma taberna à que polas noites alguns soldados acudiam a desabafar e beber... O capitão Lopes estava tentado à inspecção pacífica daquela casa. Havia moças feiticeiras, loiras, ruivas e pretas... Toda a Bósnia-Herzegovina era já um bazar, todo se podia comprar e vender. Armas pequenas e grandes, drogas, sexo, álcool... Todos vendiam, todos comerciavam. Mas na companhia do Lopes assim não acontecia. "É impossível, nós somos os últimos quixotes sobre esta terra".



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