Seguindo o caminho do vento

Páxina Anterior

A chamada

Páxina Seguinte

Era uma pandilha de carantonhas velhas

    Era uma pandilha de carantonhas velhas, escuras, o cabelo sujo e vestidos com farrapos que despediam um fedor apestante ...O mais alto e forte empunhava uma faca enferrujada e de três quartas de longo, emitiam uma vozearia intimidatória, ele corre, intenta fugir mas os olhos nublavam-se e tropeçava em quantos obstáculos havia no caminho. E os ciganos aproximavam-se mais e mais... A terra abria-se por uns buracos pretos e angostos que logo se ampliavam tãm grandes como o infinito. Abundantes mananciais de águas subterrâneas surgiam por entre os alcantilados interiores. O Aveiro acordou sobressaltado, a angústia da criança reflectida num sono de adulto...
    O Ricardo, já na rua Penhuelas de Madrid, arranjava no escritório do quarto. Preparava algumas notas para no dia seguinte expor no trabalho. Eram as zero e trinta minutos da noite. Num instante devagar lembrava o sucedido no dia 25 do mês de Setembro em Lugo... A Colensa, os laios, um tanto irreverentes ressoam-lhe no cérebro como um martelo de ferro batendo sobre um metal. Sentado numa cadeira e com os pés no canto da mesa, franzia a testa à vez que acariciava o queixo com a mão direita... Desejava tanto escrever-lhe! Mas como? Calculava as possibilidades: à casa resultava um tanto arriscado, na rua dos Cravos a porteira entrega o correio à primeira pessoa da família que vê. Supesava logo a única viável, escrever-lhe ao trabalho, sem mais demora colheu papel e lápis:

                "Minha adorada:

                De verdade nom queres saber mais de mim
                depois da velada do dia 25? Nom podo acre-
                ditar, crê-me! Se me queres, amor, o teu
                marido nom há-de ser obstáculo...".


    O Aveiro escreve depressa e sem deter-se em esteticismos de apresentaçom. A confiança permitia, incluso, ser um pouco vulgar. A sua mão era empurrada por um temor ao duplo interior, fazia algumas jornadas que nom actuava...

                "... Lembra o que dixem numa ocasiom, quando
                descubras que ele tampouco e um santinho
                e tem, seguramente, as suas aventurinhas...
                Que dirás entom? Eu nom podo resignar-me
                a perder-te assim, uma vez mais sem fazer
                nada... Sei que corro um risco enviando-che
                a presente mas nom podo permanecer pas-
                sivo ..."
.

    Levantava-se da cadeira, dava curtos passeios e volvia... Quando terminou a carta meteu-a num envelope e fechou-a. Puxo e endereço e ficou liberado de uma carga psicológica, emocional... Sucedia-lhe sempre. O seu refúgio espiritual era a escritura. Pensava que seguramente nom se dignara nem a responder. Que diz responder; seguramente nem leria... Mas sentia satisfaçom polo "dever" cumprido!
    Antes de meter-se na cama foi tomar um golo de água fresca. Na mesinha de noite, em cima de um jornal, tinha A Náusea de J. P. Sartre, leu umas páginas e depois foi adormecendo.
    O Ricardo percebia, por vezes, uma sensaçom de inutilidade em tudo aquilo que fazia. Era um desânimo, uma apatia que desembocava num sentimento nauseabundo e afastante... Nesse estado anímico nom podia sentir-se seguro na realizaçom das actividades, ainda quando estas foram vulgares e quotidianas. Dous seres antagónicos, o duplo interior como ele denominava, pelejavam polo domínio de uma vida. Dependendo da hora e do estado um deles predomina sobre o outro... Às vezes tinha um artigo, escrito pola noite, preparado para enviar a publicar e de manhã rompia por encontrá-lo horrível e até ridículo!


    Nos dias sucessivos deitava-se a altas horas da noite. Quedava-se a ler, escrever ou organizando algum trabalho para o dia seguinte. Aquela noite nom fôra menos, todavia um conhaque na sala repousando o café, jantara um arroz viúvo, baptizou-o assim polo escasso condimento... Lamentava nom possuir qualidades de "guormet"... As conservas som um mau remédio! De súpeto soou o telefone:
    -Estou!
    O rosto do Ricardo mudou de cor várias vezes. Do vermelho passou ao amarelo para ficar branco... Ao outro lado ouviu-se a voz do Aspirino! Lembrou com velocidade cósmica todas e cada uma das palavras que pusera na carta enviada à Colensa. O Aspirino limitou-se a pedir-lhe que aguardara, a esposa tinha algo que lhe dizer:
    -Quem che manda enviar-me cartas ao trabalho? O meu emprego é sagrado, sabes? Sagrado ...
    O Ricardo apertando os dentes desligou o aparelho sem piar. Nom acreditava, dava-se conta de que algo grave sucedia! Nom estava sonhando nem bêbedo, assim que tudo era rigorosamente certo. Uma incógnita rondava-lhe, nom o deixava dormitar. Como era que ele, o Aspirino, nom mentara nada? Só um saúdo seco e passou a ela o auricular... Aquilo nom quadrava no quadriculado cérebro do Aveiro. Podia ter várias leituras: ou bem ela, amargada e acossada polos remordimentos, contou tudo... Claro que nesse aspecto como era que o Cervo estava aparentemente tranquilo, nem se imutara! Nom podia ser. Também podia resultar que ela contara parcialmente, dissera ao marido que o Aveiro andara enviando-lhe cousas ...Revistas? Poesias? Poderia contar que a importunava com os envios ao trabalho sem dizer a verdadeira dimensom... Depois solicitou do esposo que primeiro chamara ele e dera um saudo brusco, intimidatório, ela botaria a bronca logo! Era um cálculo possível... Com o qual o Ricardo pensaria que eles dous estavam ao corrente, quando a verdade seria que só ela e Aveiro sabiam ao completo! Da Colensa podia-se esperar um intrincado e calculado plano, vaia que sim!
    A incertidom roía-lhe o cérebro... Outra possibilidade seria que algum companheiro de trabalho da Colensa colhera a carta e lha entregara ao Cervo. Mas a contradiçom seguia: como era, pois, que o Aspirino se mostrava tãm pouco afectado?
    Nesse estado confuso o Ricardo desejava tanto falar com alguém! Encontrava-se tãm só... Começou a procurar desesperadamente os telefones dos amigos... Encontrou o do Carlos Lopes e chamou ao quartel militar. Quando se deu conta das horas que marcava o relógio já era tarde:
    -Estou!
    -Carlos Lopes está por aí?
    Tardou em responder uns instantes e logo dixo:
    -Nom. Carlos está polo dia, senhor. Além disso, sabe você a hora que é?
    O Ricardo desculpou-se e desligou resignado. Depois ainda fixo alguma cousa mais, trocou de sítio algus livros e abria os jornais atrasados imerso no tema, e assim, sonâmbulo ficou dormitando...

                "A conduta dos sujeitos introvertidos é subjec-
                tivamente antagónica aos seus desejos ínti-
                mos. Sempre tãm impregnados polo derro-
                tismo -enfatizava no discurso o indivíduo
                desde o púlpito- moral. Uma moralidade
                hipócrita...".


    O Ricardo deu um salto na cama e pulsou o interruptor da lâmpada... Passava as duas mãos polos olhos, angaçava o cabelo de adiante atrás e dixo espreguiçando-se:
    -Outro maldito pesadelo!

    No dia seguinte tudo lhe dava voltas num mar de confusões. A chamada, a carta da discórdia. Como podia ter escrito aquela delatora carta?
    -Quando tinha à Colensa arrecantada na corredoira dos sentimentos paixonais, hala! Estropeio tudo com uma carta inoportuna e até repugnante... Atraiçoei-a! -lamentava.
    Nos dias sucessivos mais de uma vez o Aveiro colhera nas mãos o telefone para chamá-la e pedir-lhe explicações. E se nom as queria dar? Entom ameaçaria-a com contar aos que ainda ignoravam! Mas sempre desistia... Parecia-lhe demasiado cruel! Primeiro intentaria saber algo por meio da sua mãe, a senhora Alícia. As festas do Natal andavam perto... Naqueles meses nom volvera ter notícias de Lugo. Convidou à mãe a passar as festas em Madrid com ele. A ideia de viajar à Galiza ficou descartada, portanto escreveu para Vilavelha.
Em quanto o correio chegou à aldeia a mãe telefonou confirmando a próxima viagem. O Ricardo deluvava as mãos satisfeito. Faltavam vários dias para que a senhora Alícia chegara, contava as horas num esperar intrigante.

    Como as horas de desesperança e angústia, as de alegria também chegam. A noite anterior chamara a senhora Alícia:
    -Hoje saio para lá às dez da noite. Vai-me esperar... Eu nom conheço Madrid!
    Lembrava o Ricardo rolando pola Grãm Via caminho da Estaçom do Norte. O dia está carregado de nuvens, a chuva nom tardaria... Um forte vento madrugador fazia mover a folhagem das árvores com suma violência. O comboio retrassara vários minutos, o Aveiro aguardava com certa inquietaçom:
    -Maldita Renfe!
    Depois de muito anunciar a entrada do "Rias Altas", divisava-se ao longe a dianteira da máquina avançando, cortando o ar, majestosa e lenta. A gente vai colhendo posições ao longo da plataforma da estaçom, o Aveiro metido numa gabardina verde escura, caminha fixando-se nas janelas do comboio que passa expondo aos viageiros, debruçados e saudando:
    -Ricardo! Por aquí...
    A mãe dera pronto com os olhos no filho. Ele sacou as mãos dos bolsos da gabardina e foi correndo abraçá-la.
    -Passamos um frio...
    -E logo nom trazia calefacçom?
    -Nom.
    A mulher lançava lumes contra a Renfe, Madrid o tempo e à má sorte que lhe levara o filho da sua casa camponesa. Caminhando para o carro, que estava a poucos metros, a senhora Alícia maldizia a emigraçom e às frustrações do seu povo. O Ricardo nom acreditava na consciència política que observaba na mãe tãm de repente. Uma beata religiosa outrora. Seguirom falando longo da situaçom de Galiza.
    -Mas, logo com é que você mudou tanto? -sorriu Aveiro.
    Ela riu e fazia-lhe observações ao filho de que nunca fôra tãm ignorante como ele achava.
    Já o carro ia pola rua da Grãm Via de volta. A senhora Alícia olhava com muito interesse o que se divisava pola janela. Ricardo pensava em como plantejar o assunto da Colensa... Depois dum silêncio a treveu-se. A mãe rebuscava nos bolsos do abrigo o pano das mãos. Sorria, deu uns acenos com a cabeça e dixo:
    -Estiverom em Vilavelha há pouco. Mas o homem da Colensa ultimamente nega-se a ir por lá. Está algo raro!
    O Ricardo calou por um momento e lembrou, uma por uma, as situações estranhas nas que cabia possibilidade de uma ou outra versom dos factos... Nom podia crer que o Aspirino, estando ao corrente, tivesse a pouca vergonha de se deixar ver por Vilavelha. Seguia com tanto incertidom com ao princípio. O único que lhe parecia mais improvável era que o Cervo fôra sabedor do sucedido em toda a sua exactitude.
    Aveiro afundava-se no seu pensamento esquecendo, por vezes, a presença da senhora Alícia. O trânsito era pouco fluído, começara a chuviscar e as aglomerações eram maiores do normal.
    -Que dizia? -perguntou o Aveiro.
    -Sim, homem! O outro dia derom-me um exemplar da Galeria Pública. Muito ri! Os teus trabalhos som os melhores...
    A senhora Alícia, num alarde maternal, empendorava seu filho.
    -Nom exageres. E só conto cousas sem importância, algumas comprometedoras, isso sim.
    -Nom me digas que há algo de certo nessas situações de adultério e diversões imundas?
    -Pous por vezes, sim.
    Foi entom quando Aveiro, num momento de lucidez e inspiraçom -cavilava-, deu com a forma de saber a verdade. Ameaçaria-a com publicar, como uma crónica, na Galeria se nom contava o asunto tal qual sucedera.
    -Como é que nom tinhas dito nada da revista?
    -É que ainda sairom poucos números. Imprime-se em Santiago, onde mais se vende é em Lugo capital; gostam muito dessas parvadas e cotilheios!
    Ricardo detivo o carro. Estava já na rua Penhuelas, 18. A estadia da senhora Alícia em Madrid nom foi tãm longa como o filho pretendia. Ela nom dormia pensando nas cousas que seguramente ficariãm sem fazer devido à sua ausência. O Ricardo reprendia-a, para poucos dias que estava com ele nom sossegava! Desculpava-se, mas aos poucos minutos começava de novo com as teimas de sempre!


Páxina Anterior

Ir ao índice de Páxinas

Páxina Seguinte


logoDeputación logoBVG © 2006 Biblioteca Virtual Galega