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As rodas dos carros cortavam
na água que descia polas ruas, a chuva ia em aumento. O Aveiro sentia por vezes uma crueldade
maligna e premeditada. Um sentimento de asco achaiava-o de um jeito violento... Uma força estranha impulsa-o,
guia-o polos carreiros da vingança e do ódio. O seu espírito desfazia-se num diálogo contraditório,
violento e áspero roendo-lhe as entranhas.. As nuvens do firmamento caían-lhe
em cima embrulhando-o. Perdia-se nas mil bifurcações de inumeráveis montanhas seccionadas
por cortes a cada pouco; por onde se deixam ver as diversas cores do interior...
Uma densa névoa avança desde o cume até as profundidades infinitas... Ruídos
guardados nos extensos vales ressoam no eco dos tempos. Vozes milenárias de camponeses anónimos, estranhos
seres invisíveis falam de vacas, de ceifas... Da erva que se molha... E depois do sonho, o asfalto, os edifícios,
a urbe!
Levava dous dias o Ricardo em Lugo. O trabalho ficara
resolvido e dispunha-se a sair da cidade sem deixar-se ver polo
"Central" nem polos locais do Pedro Rivelo. Nunca com tanto sigilo
andara por Lugo. Sentia-se um fugitivo indigno. Assim a cidade dos seus amores
convertera-se num pesadelo, numa gaiola perigosa!
Eram as três da tarde, acabava de almoçar na Parrilha, um
restaurante da estrada da Corunha ao seu passo pola cidade. Depois de engolir um
café só rolou, numa ideia súbita, para Vilavelha. A tarde apresentava-se
bretemosa, caía uma insinuante chuva.
Antes de entrar na estrada secundária que conduz a Vilavelha,
o Ricardo olhou polo espelho reflectante do carro precatando-se de que o seguia,
a distância prudencial, um carro vermelho, marca Citröem... Um modelo luxuoso.....
A inquietaçom apoderou-se do temeroso Aveiro... Conexionava isto com o
incidente da Galeria. Lamentava agora o impulso que o induzira à
publicaçom da "Crónica". Estudava as possibilidades, sobre a marcha,
de dar-se à fuga, mas a onde ia com um carro de dous mil centímetros cúbicos
detrás? Nom se podia... Ademais o Citröem ia-se aproximando cada vez mais, já
estava a poucos metros. Foi nesse instante que lembrou a pistola que metera
fazia poucos dias na caixa das luvas, parte superior do quadro de indicações do
carro, um "cachimbo" do seis trinta e cinco, a propósito da situaçom...
Polo espelho poduiam-se distinguir duas pessoas dentro do carro perseguidor. A
estrada, no tramo anterior ao ramal de Vilavelha, é estreira e cheia de
terraplenos perigosos nos laterais. O Citröem seguia cada vez mais próximo e
ameaçante. Ricardo intentava, desesperadamente, ocupar o centro da estrada para
nom deixar adiantar aos sujeitos do carro. A pistola comprara-a a um traficante
de pouca monta numa viagem anterior a Lugo. Era ruim e por vezes encasquilhava!
Teria que afiar a máximo a pontaria... Ergueu a tapa e colheu-a, guardou-a na
algibeira do casaco. Num descuido colou-se-lhe o Citröem numa revolta estreita
obrigando-o a meter-se à borda direita... Tivo que deter-se ante a freada
brusca dos intrusos. Sairom do carro dous indivíduos, um alto e forte, o outro
algo mais baixo mas também robusto. A quadratura dos ombros impunha pavor...
Seus caracteres eram próprios da América do Sul ou da moraria. Bem vestidos e
com ares altivos e orgulhosos. Aveiro aguardou sem mover-se do carro, baixou
algo o vidro lateral e com a mão direita cerciorou-se
de que o seguro da pistola estava listo...
-Baixa daí, impostor! -dixo o mais alto em espanhol com
acento estranho.
O sujeito baixo vinha uns metros mais atrás com as mãos na algibeira das
calças. O alto trazia-as fora, aparentemente sem nenhuma ferramenta com que
bater! Ricardo tremia, sabia que se nom fazia uso do "cachimbo"
seguramente o deixariam, no melhor dos casos, feito pó. A estrada permanecia
desértica como nunca...
-Imos-che dar que publicar, porco vil, nessa revista de merda
-increpou o baixo.
A Ricardo quedavam-lhe instantes para reagir... Empunhava a
pistola ocultando-a, com a mão esquerda dispuxo-se
a abrir a porta. Dum salto saiu, montou a seis trinta e cinco e disparou ao mais
próximo à cabeça e seguidamente ao torax... Quando este ainda nom chegou ao
chão com o esqueleto,
disparou por segunda vez ao sujeito baixo. Rematou-os e saiu a toda velocidade
no seu carro... Durante aqueles horríveis momentos nenhum veículo assomou pola
estrada comarcal Lugo-Monforte. No desvio para Vilavelha aminorou a velocidade,
nom sabia que fazer, continuar ou aparecer pola aldeia... Pensou melhor e seguiu!
Quando ia passando pola ponte do rio Cabe, lançou a pistola às águas serenas
e claras. No rio produziu-se uma sucessom de ondinhas, alguns pássaros
levantarom voo.
-Maldito Aspirino... Nom tem ele coraçom, teve que enviar
brigãos!
Ainda nom passaram cinqüenta minutos do sucedido e já
rolava para Madrid pola estrada número seis. Mais tranquilo, surpreendido
gratamente, o sossego era total! Que cara poria o Cervo quando recebera a
notícia? Daria algo o Ricardo por contemplar as elasticidades dos músculos do
seus rosto!
-Cheio?
-Cheio...
-Senhor, limpo-lhe os vidros do carro?
-É que nom vê que estãm limpos?
-Vale, vale. Desculpe...
O Ricardo enfiou para o lavabo da Estaçom de Serviço. Um
fedor ultra-tumba saía polo buraco preto do retrete. Tapou os orifícios nasais
com uma mão e com a outra
abriu a água e levou uma presa dela para a cara...
-Quanto é?
-Duas mil...
-Tenha.
Comprovou as rodas, a pressom era óptima; deu uma volta ao
redor, introduziu-se e arrancou.
Depois de várias horas de viagem transitava pola província
de Segóvia. Puxo a rádio, era hora de notícias:
-Um atentado terrorista -dizia uma voz feminina- desfai o
quartel general dos Judeus na cidade de Tiro em Líbano...
-Terrorista? -indignado deu meia volta ao interruptor da
rádio.
A Ricardo agolpavam-se-lhe as informações na cabeça...
Fazia-se perguntas sobre a manipulaçom informativa que chegava sempre de uma
das partes em conflito! Como podia ser objectiva? Neste caso sempre conectavam
com Tel Aviv ou com Washington!
Já em Madrid, um novo serviço informativo de RN puxo um
tanto nervoso ao Aveiro:
-Na estrada comarcal Lugo-Monforte foram encontrados sem vida
dous corpos a poucos metros de um Citröem, modelo Tiburom, que tinha sido
alugado em Lugo uns dias antes...
Deu meia volta ao interruptor e permaneceu sentado dentro do
carro uns minutos diante do dezoito da rua Penhuelas. Pensava, dando-lhe voltas
aos factos.
-Foi em defesa própria...
As notícias sucediam-se: os indivíduos eram marroquinos e
estavam ligados ao tráfego de droga e adicavam-se, nos tempos livres, ao ajuste
de contas polo módico preço de cem mil pesetas... Nom se sabia -diziam na
rádio- se resultarom mortos por profissionais ou por alguém que actuara em
defesa própria... Aquelas novas vieram a tranquilizá-lo. Cada momento que
passava sentia-se mais confortado. Agora rondava-lhe uma ideia... Ao Aspirino
havia que lhe devolver a moeda, nom podia ficar assim, além disso que lhe
assegurava a ele que nom volveria intentar matá-lo?
-Estas lentelhas nom há quem lhes meta dente...
-Um pico duras, quiçá.
-Quiçá?
O Ricardo escutava com atençom, polo menos nom pediria
lentelhas! Havia também potagem, uma espécie de mistura de ervanço, patacas,
acelgas e água salada... No restaurante apenas comiam quatro pessoas. Mal
sinal, o Aveiro tinha como norma, quando nom conhecia, entrar nos
establecimentos concorridos.
-Também temos paelha...
-Paelha.
-E de segundo?
-Bife grelhado
-Vinho?
Tinto.
O camareiro anotava com letra estirada que só ele entendia.
Contava os pratos que desde a cozinha passavam por uma janelinha estreita.
A imprensa morbosa seguia falando do caso da comarcal Lugo-Monforte
sucedido fazia dous dias, erguera muito pó... O "Diário" relacionava
agora aos traficantes de droga com uma rede mafiosa luguesa... Talvez tinham,
incluso, conexões de espionagem.
Este jornal trazia hoje uma grande reportagem de duas páginas... Ricardo lia,
sentado na cadeira diarre da mesa do seu quarto, ao regressar do trabalho, pola
noite.
Intrigava-o um parágrafo do jornal: "... Ao sujeito que
responde às iniciais -nom se nos facilitou mais informaçom para nom intorpecer
as investigações- M. L. O.
encontrou-se-lhe uma lista de nomes e endereços de personagens importantes da
vida local..."
Mais adiante o jornal relaciona aos indivíduos marroquinos
com a mafia, com as personagens importantes e com o partido de direitas A. U (Aliança
Unida).
A Ricardo produzia-lhe horror poder ver-se algum dia
misturado naquele labirinto delictivo. Poderia derivar numa complicaçom mafiosa
da que seria difícil sair com vida! Dava voltas polo quarto, fechado na
soledade nocturna. Nesse instante soou o telefone. Aveiro correu para o aparelho
como se aguardara algo... Detivo-se uns segundos e logo colheu-o:
-Estou; quem é?
-Aveiro, Ricardo Aveiro? -ouviu-se uma voz feminina
angustiada e longe.
-Sou eu...
-Sem perda de tempo, fuja dessa vivenda... Nom perda um
minuto...
-Quem é você?
-Querem-no matar...
Antes de que a mente do Ricardo pudera coordenar, ouviu-se o
sinal de ter-se cortado a comunicaçom... Alguém tinha demasiada informaçom
sobre o Aveiro, e quiçá arrastado polo pânico das complicaçoes decidiu atar
alguns dos cabos que puderam resultar perigosos! Aquilo sim viera a inquietá-lo.
Logo pensou melhor: deixaria tudo, só levaria a pasta de trabalho, cartilhas do
Banco documentações, endereços e
assuntos pessoais. Posteriormente, passado o perigo, mandaria recolher o resto.
Nom se podia perder nem um minuto! A voz feminina semelhava-se à da Colensa...
Mas, custava crer, Colensa? Depois de todos os escândalos? Enfim, saiu quase
correndo, atemorizado... Colensa? Seguia perguntando-se...
Do Hotel Lisboa trasladou-se à rua Av. de Aragom no número
113. A imprensa emudecera já depois de vários dias... O caso nom interessava!
O Aveiro seguia escrevendo cada semana uma pequena coluna na Galeria. O
Director informara-lhe que andavam investigando a rede da droga em Lugo que
podia haver mais atrás... E criam que certo "amigo" do Ricardo podia
ver-se implicado! Quem era o tal amigo?
-De momento nom podo dizer nada. Pronto receberás um
encargo! -concluira.