Seguindo o caminho do vento

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A derradeira carta

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I 11 rua das Hortas confluía com a Segunda Ronda

    A rua das Hortas confluía com a Segunda Ronda, que ainda em construçom mantinha uma buliciosa actividade na zona. Um desnível, com regato ao fundo, entrelaçava o final da cidade com as aldeias colindantes.
    O Aveiro já morava na nova pousada. Uma casinha baixa e acolhedora desde onde se desfrutava de uma vista maravilhosa. Tinha uma cave onde a senhora Juliana criava galinhas e coelhos. Às margens da rua misturavam-se edifícios em construçom com hortas repletas de couves, repolhos e toda a classe de verduras comestíveis.
    A senhora Juliana era mulher de uns sessenta e tantos anos; baixa e morena, muito magra. Na casa moravam outros três hóspedes! Luís, estudante no liceu público. Júlio que era do Berzo e estudava nos Jesuítas; e "Longuinho" -chamam-lhe assim pola sua exagerada estatura para seus anos -, que estudava na Escola de Mestres Industriais.
    O Ricardo Aveiro gozava já das simpatias e até preferências da senhora, muito exigente e por vezes um tanto maníaca; também caíra simpático aos restantes companheiros... A casa dividia-se em cinco quartos. Segundo se entrava, à esquerda, o primeiro é o quarto de estudo, logo estãm as duas habitações dessa zona ao longo do passadiço, depois a cozinha. À direita há um quarto fechado e seguidamente o dormitório da pousadeira, senhora Juliana. Defronte à entrada, e ao final, os serviços. Nas duas habitações da esquerda há quatro camas, que é onde dormem os estudantes.
    Ao Ricardo ferve-lhe o sangue por se comunicar com a Colensa. Nom se resigna a deixar esmorecer as relações. ..Cavila de noite e de dia em como lhe fazer chegar alguma notícia sua. Por vezes pensa enviar-lhe missivas por algum companheiro da nova morada. Mas logo recapacita ...Essa possibilidade é um tanto imprudente, acaba de chegar, nom tem a confiança necessária. Resolve, já que logo, escrever uma nota breve e fazer-lha chegar por meio do Pedrinho...
    -Como nom se me ocorrera antes!
    A estupidez, a incompreensom e as dificuldades foram tam unidas e freqüentes nas relações de ambos os dous que parecia impossível a reconciliaçom. E sem embargo as circunstâncias foram tam belas nos sonhos das madrugadas do Aveiro que quando acorda sente uma mistura de raiva e tristeza. ..O temperamento brusco e duro dela trocava-se doce e terno nas noites de penumbra azul-celeste...
    Naquele dia iria ao Central para entregar a carta ao amigo e aguardar à Colensa na Porta de Santiago de regresso a casa. O Pedro entregaria-lhe a missiva e logo já dependia dela!

                "Minha querida:

                Nom podo seguir assim por mais tempo, meu
                amor. De noite e de dia penso em ti e só em ti.
                Fai vários dias que te nom vejo e parece-me
                uma eternidade. Envio-che a presente para
                que escolhas o lugar e a hora onde podamos
                encontrarmo-nos para pôr claras as cousas.
                Faz o favor, amor! Diz algo ...".


    Meteu o texto num envelope branco, fechou-o e encaminhou para o Central, nom cavilava noutra cousa, a vida tornara-se-lhe infame. Como um castigo do mais arriba, desvelara-se-lhe o sono; as maravilhosas madrugadas de azul-celeste convertirom-se em horrorosos pesadelos que traziam fantasmas imensos e com miles de órgãos dispostos para o ataque.
    Na cafetaria estavam o Afonso, José, Toninho e alguns outros sujeitos, o Pedro nom aparecia por nengures. Perguntou e disserom-lhe que seguramente andaria polo Círculo. Sem perda de tempo, partiu para lá.
    Caía uma suave chuva que ia humedecendo as roupas dos transeuntes. A gente caminha depressa... Nada mais entrar no primeiro andar do Palácio do Círculo encontrou-se com o Pedro. Explicou-lhe asinha a proposta. Rapidamente, só faltavam uns minutos para que a Colensa saíra do colégio, partirom para o ponto elegido. De caminho o Pedro perguntava como era que chegaram a tais circunstâncias. Ele contava a história do ocorrido.
    Quando iam baixando pola rua dos Cravos, subia ela folheando num livro. O Ricardo deu um salto para o primeiro portal. Ficou o Pedro só na rua com a carta nas mãos:
    -Que lhe digo?- perguntou indeciso.
    -Dá-lhe a carta a espera resposta -gritou o Aveiro de dentro do portal.
    Quando a menina passava à altura deles, o Pedro abordou-a e intentou entregar a carta... Ela fixo ademanes de colher a missiva à vez que tentava abrir-se passo:
    -É do Aveiro -dixo o Pedro.
    -Sim?-respondeu ela.
    Quando o Pedro apartou a um lado, ela arrancou correndo atirando a carta ao chão. Ricardo observava já fora do portal. Nom acreditava no que os seus olhos viam! Em silêncio regressarom para o Central. O Pedro devolveu a carta que ele rompeu e atirou-a à primeira lixeira. ..O dia cinzento e as circunstâncias adversas tinham um efeito psicológico sobre o espírito do Ricardo. Com uma sensaçom de abatimento e derrota circulava polas ruas húmidas da cidade sonâmbulo, ausente das pessoas com as quais se cruzava, dos conhecidos que o saúdam... A vida carecia do interesse que a pudesse fazer credora de ser desfrutada. No interior da sua massa encefálica bailavam imagens, pensamentos... Os amigos lamentavam o estado deplorável no que se encontrava. Os estudos acumulam-se-lhe, comia pouco e por vezes delirava... As pombas da cidade debuxam no espaço e outras figuras geométricas... O ar acaricia os rostos secos e impávidos dos viandantes. As pegadas dos séculos reflectiam em cada rua, em cada monumento silencioso e régio. A existência dos seres humanos nom é mais que um parpadeio nos olhos da imensidade cósmica. Porquê, entom, tanta dificuldade para lograr os homens e as mulheres o caminho que os conduza polo risco da felicidade?
    O ano 1974 ia andado; já apenas se falava da invasom Turca sobre Chipre, que no Agosto enchera as páginas da imprensa. Nas montras de Lugo luziam fachendosas árvores do Natal.
    O Ricardo resistia-se a pensar que a Colensa tivesse dito já a última palavra a respeito das relações de ambos. Agora pensava em mandar urna carta polo correio para a rua dos Cravos. Ia-lhe pôr remite de mulher, assim seguramente nom despertaria a curiosidade nos pais.
    Agora começaram os problemas com os professores, perguntavam-lhe o motivo polo que nom estudava, ele alegava problemas de alojamento e algum outro contratempo ocasional. Quiçá mais adiante! Nos espaços entre classe e classe emborranchava papéis! Longas cartas para a menina que logo rompia.
    À saída do Seminário passou-se polo Central e apenas estivo lá dez minutos. A atitude amarga e silenciosa estranhou muito aos demais...
    -Nós nom lhe fizemos nada para que apenas nos dirija a palavra -comentava o Afonso.
    -Eu sei o que lhe sucedeu -interrompeu o Pedro. Tem problemas, isso é tudo.
    O Toninho mudou de conversaçorn ante a quantidade de gente que os observava e pronto se deixou de falar do Ricardo.
    Na rua das Hortas o Aveiro puxo-se a escrever a carta que enviaria por correio à Colensa. Um nó na gorja impedia-lhe passar com facilidade a saliva... Uma espécie de apatia percorria-lhe o corpo, nada do que fazia tinha senso, nada!

                "Minha querida:

                E a derradeira que che escrevo. Pronto me
                vou ir de Lugo, nom suporto a cidade onde
                tãm feliz fui contigo e agora sumamente
                desgraçado. Porque nom respondes às minhas
                cartas? Seguramente finalize o presente curso
                e logo partirei. Nom sei ainda para que lugar,
                mas será longe! Cá te deixo, a ti, à cidade,
                aos amigos... Deixo o que mais quero -junto
                com os pais -porque à vez isso que amo
                criva-me a alma, retorce-me o coraçom e
                tira-me o sentido. Faz o favor, envia-me polo
                menos uma cartinha, queres?".


    Puxo selo ao envelope e saiu rápido à primeira caixa do correio... Como se temera que o passo do tempo o persuadira de rompê-Ia como tantas outras. Logo um alívio estranho libertava-o da inquietaçom e desesperança anteriores. Agora manteria aceso o archote da esperança por alguns dias.


    Naquele sábado pola manhã o Júlio e o Aveiro escutavam a um acordeonista, vizinho do lugar, que os deleitava com umas mazurcas ...Bom, mais bem eram simples intervalos melódicos executados com ritmo anárquico. Quando os ouvintes riam e comentavam sobre o solista, viera o carteiro alterar a disposiçom da paisagem e interromper o cenário. Perguntava por um tal Ricardo Aveiro, ele saltou asinha:
    -Sou eu. Que deseja?
    -Carta registada. Assine, faga o favor.
    Nada mais colher o sobrescrito nas mãos compreendeu que nada bom podia trazer-lhe. No remite figurava o nome da senhora Andreia. Lívido e apressurado abriu e puxo-se a ler:

                "Sr. Ricardo Aveiro:

                Pido-lhe encarecidamente deixe em paz à
                minha filha. E que nom se dá conta que
                é uma menina? Faga o favor, nom incomode
                mais, já bastante dano causou, nom crê? (...)".



    Sentia-se desfalecer como se a anemia de todos os astinentes do mundo de repente se apoderasse dele. O rosto mudava de cor com velocidade incontrolada. Uma profunda indignaçom impedia-lhe continuar lendo... Mais adiante a senhora Andreia informava que o senhor Paraná estava muito grave. Aumentara a doença e acima ele com as suas impertinências perturbando a paz da rua dos Cravos. Com uma profunda mágoa e tristura infinita o Ricardo intentou dar um tom de burla à carta. Chamou à senhora Juliana e ria com ela porque uma "mãe" enviara carta pedindo-lhe deixara em "paz" à filha! Sonoras gargalhadas alegravam a casa da rua das Hortas. Mas o Ricardo tinha por dentro bem preto o espírito. Naqueles instantes tomara a decisom final de ir-se embora da cidade. Nom fixara o dia exacto, mas cumpria acelerar o processo.


    O domingo chegou a mãe do Ricardo pola rua das Hortas. Viera a Lugo ver ao senhor Paraná.
    -Coitadinho, está a morrer -contava a senhora Alícia.
    A pousadeira contava o muito que lhes fizera rir o Aveiro no dia anterior com a carta de uma "mãe"!
    A senhora Alícia opinava que seu filho um dia levaria paus de algum pai ofendido.
    -É um traste! E nós que queríamos que fosse padre...
    O Ricardo mordia os lábios noutro quarto pensando no cretina que se lhe estava volvendo a vida. Fazia planos migratórios para Barcelona. Lá estudaria e trabalharia, ainda que resultara duro... Há que esquecer quanto antes. Depois pensava melhor; Barcelona está muito longe. Algo mais perto seria preferível. Fazia cálculos, como se isso de esquecer fora um produto aritmético ou um mecanismo cronológico. Ignorava que as feridas do coraçom nom curam jamais.
    No entanto a senhora Alícia saiu da casa e enfiou para a rua dos Cravos, ia ver ao doente. Era alheia totalmente às relações do seu filho com a Colensa.
    As árvores moviam-se com força. As nuvens iam pretas e com pressa. Pingas de chuva batiam com delicadeza nos vidros das janelas, como prelúdio de um valhom mais violento... Nos ouvidos do Ricardo sussurrava a voz cálida da menina das noites azul-celeste... Contava os minutos calculando quando a mãe chegaria à casa do senhor Paraná ...
    -Como vai o doente? -perguntou a senhora Alícia.
    -Mal -franziu o cenho a Colensa.
    A senhora Andreia saiu do quarto do marido a receber à mãe do Ricardo. Dixo que agora estava dormitando e que era preferível deixá-Io descansar. Convidou-a a um chá; a Colensa no obstante, retirou-se ao quarto de estudo; outrora lugar de encontro do Aveiro e mais ela. Andreia perguntou pola nova pousada do filho à senhora Alicia. Esta contava maravilhas da pousadeira e dos companheiros de seu filho. Acolheram-no com simpatia, estava muito contente!
    -Imagina a confiança que devem ter que a senhora contou-me que muito rira lendo a carta de uma "mãe" que pedia ao Ricardo lhe deixara em paz à sua filha!
    A senhora Alícia ria inocentemente; a senhora Andreia franzia a pele do rosto, furiosa. Levantou-se da cadeira e alçando a voz dixo:
    -Sabes quem é essa senhora da carta?
    -Nom, mulher ...
    -Sou eu, eu, eu mesma... Canalha!
    A mãe do Ricardo ergueu-se também da cadeira, lívida e nervosa levou as mãos à cabeça.
    Um silêncio incômodo e até dramático imperava na casa. A Colensa, fechada no gabinete, tremia inqueda e impotente ao ouvir o que se falava na sala contígua.


    Passarom alguns meses da desafortunada visita da senhora Alícia à rua dos Cravos. O Ricardo acudia diariamente à Porta de Santiago para desde as alturas da muralha ver passar à Colensa. Na mente do Aveiro sô rebolia uma ideia obstinadamente: Vingar-se! Morte ao sujeito que acompanhava a diário à sua namorada até a casa. O tal Aspirino de "marras", de apelido Cervo Irimia. Nom sabia porque estranho motivo, quando o Aveiro recebeu a notícia, uma alegria endemonhada, que ele tratava de reprimir sem êxito, invadia o seu ser. Sentia ódio para si próprio. Quiçá arrastado por um ingénuo desejo de que as cousas mudaram. O senhor Paraná morrera pola madrugada. Deixava para sempre os relatos do seu passo pola América. A poltrona ficaria vazia e em poucos dias nenhum jornal atrasado jazeria nos recantos da casa. No seu modesto carrito ainda retombariam as gargalhadas, conselhos e chistes ... No entanto o Ricardo pudo comprovar que as circunstâncias mudaram para pior. O Aspirino nom deixava à Colensa em nenhum momento, aquelas relações pareciam indicar que desembocariãm em matrimónio. As esperanças do Aveiro afogavam-se já num mar de dúvidas inúteis. Só quedava a última saída... Matá-Io! Lembrava entom os conselhos que lhe dera um companheiro de estudos:
    -Quando alguém se che atravessa no caminho obstaculizando-che o passo, o melhor e o mais fácil é matá-Io!
    Matá-Io? Parecia mais fácil do que resultava... As dúvidas eram grandes, demasiado grandes para realizar uma cousa de tanta transcendência. A consciência cristã e o temor às conseqüências derivadas dissuadiam-no de cometer o crime. Mas nos momentos de máxima amargura calculava como seria... Iria esperá-Io a que saíra a casa da Colensa e antes de sair fora do portal, zás, espetaria-lhe uma faca. Seria melhor, porque uma pistola faria muito ruído.
    Na semana seguinte o enterro do senhor Paraná, começara o Aveiro a preparar, junto com os companheiros de estudos, a viagem de final de curso. Os preparativos da gira e os estudos dos exames do final do bacharelato terminarom fazendo que esquecera a operaçom criminal. Já nom pensava em matar ao Aspirino. Para quê? Merecia a pena ir à cadeia por algo tãm absurdo? Além disso, se realmente a quem queria a Colensa era a ele, adiante!
    Ficara atrás o Seminário. Nom voltaria, nom queria seguir para abade e menos em Lugo...
    Os amigos foram-no despedir; partia de viagem de final de curso, ele e os restantes alunos do mesmo grau. Dava-lhe mágoa que o Afonso, Ribeira, Pedro e Toninho já nom estiveram ali para viajar também! O expresso chegara à estaçom, a gente arremoinhava-se correndo às portas do comboio. O Ricardo conversava com o Afonso, prometia enviar-Ihes postais de Madrid, Itália e Grécia. Logo regressariam por Portugal, via Lisboa-Madrid.
    -Uma viagem longa, eh! -dizia o Toninho.
    O Aveiro assentia com a cabeça sem dizer nada... Os professores davam instruções aos alunos, o seu paternalismo ficava um tanto em ridículo observando a indiferença dos moços... O Ricardo aproximou a boca à orelha do Afonso e dixo:
    -Se podes falar com a Colensa diz-lhe que a sigo a querer ...
    O Afonso puxo cara de estranheza e mudou de conversa:
    -Que nos envie uma areia do Partenom por correio! -riu com os outros.
    O comboio deu o primeiro silvo e o Ricardo apressurou-se, deu o último adeus... Olhou para a cidade que, ao lado de arriba da Ponte da Chanca, erguia-se indiferente como jamais... Desde Madrid iriãm em aviom à Itália e logo seguiriãm viagem para a Grécia, em autocarro.



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